segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

SOPRO OU SABER NADAR NA CORRENTE DAS PALAVRAS QUE SEPARA O MUNDO DO PALCO

“Trabalho em teatro desde 14 de fevereiro de 1978, mas esta é a primeira vez que estou num palco. Sempre trabalhei na sombra. Agora que me podem ver pela primeira vez, certamente conseguem reparar como sou pálida. A minha pele não está habituada às luzes. O meu corpo, o meu rosto e o meu andar não são o corpo, o rosto e o andar de quem vive sob as luzes. A minha roupa negra é roupa de quem quer ser confundida com a sombra. Visto-me para ser invisível na escuridão. Não sou feita para ser vista. Mas hoje estou em palco, sob as luzes, à vista de todos. Hoje corro o risco de perder a minha amada palidez.”

Sopro, Cena 1, Cristina Vidal
 “É o principio de uma ideia porque ainda não estava desenvolvida, mas era mais do que isso, porque já abrira caminha amplos: a questão da respiração do teatro, os seus pulmões e consciência, do ponto com o centro neurológico, nervoso, emocional e muitas vezes moral do edifício.”1
 Tiago Rodrigues procura com o sopro a personificação do teatro, teatro como edifício, espaço físico, como entidade que vive, respira, tem consciência própria, e da importância do Ponto, como centro neurológico, nervoso, emocional e centro moral do edifício.
O edifício vive, respira, pensa e age através do Ponto. Sem o Ponto o teatro morre, está em ruínas, e é através do Ponto que conseguimos ter a real perceção do teatro. 

Tiago diz que a memória do teatro não é exclusiva do Ponto, mas este tem uma posição lateral, mas total, uma ligação pessoal e íntima com a função dos atores, a representação. 

O Ponto é a “como a mão do dentro do fantoche”2 que lhe dá vida. “A figura do Ponto, contêm dentro de si, não só a história do teatro como edifício, mas também a essência do gesto dramático, porque ele antecede a estética, a forma, o seu trabalho é subterrâneo. Garante a memória do significado radical das palavras originais e a proteção da existência do texto que antecede o seu significado.”

É centrado no papel do Ponto como os pulmões do teatro que a peça começa a desenvolver-se. São esses pulmões que dão alma ao edifício, e através deles, da Ponto, o Sopro, Tiago Rodrigues dirige uma peça sobre peças, com atores que representam atores que representam personagens. Um texto que é uma soma de textos, atores que são personagens, e personagens que ultrapassam os atores.

Tudo isto contado pelos pulmões que fazem respirar o teatro, a mão que guia o texto, confortavelmente dentro do fantoche de pano, sem que ninguém a possa ver, mas que ela tudo vê, tudo sabe e tudo sente.
A Ponto também serve para Tiago Rodrigues, como a evocação do teatro como local de trabalho de várias pessoas, da máquina que tem de estar bem oleada para funcionar, e que sem essas pessoas não existe, não é possível.
A peça parece um relato histórico dos anos de trabalho de Cristina Vidal, a nossa Ponto, mas na realidade é a distorção de histórias vividas por ela, é uma ficção baseada na distorção da história do teatro. 










Mas essas histórias, ou melhor, o texto reescrito dessas histórias é contando pela Cristina Vidal como ponto, ela vai soprando as suas histórias aos atores.
Aqui é que está o fascínio do Sopro, ser uma peça de teatro onde a personagem, de que todos os atores deveriam ter vergonha de recorrer, pois porque tal só acontece quando se esquecem do texto, toma o papel de personagem principal na peça.
Ela na realidade é a atriz principal, o seu nome seria cabeça de cartaz, mas ela representa fazendo-o da maneira como sempre trabalhou a vida toda, soprando o seu texto aos ouvidos dos atores. Eles, nesta peça são os fantoches que somente dão o seu corpo para serem animados, é lhes dado animo, aqui na verdadeira concepção do termo em latim ANIMUS, dar alma, coragem, desejo ou mente.

Numa possível análise da estrutura da peça, pode-se concluir que esta está composta por várias histórias, várias perspetivas e significados, tendo todos um elo de ligação, a Ponto, Cristina Vidal. Em o Sopro, Tiago Rodrigues constrói uma narrativa, que ter histórias dentro de histórias, conduz o espetador por uma sequência de cenas que o fazem compreender o teatro através dos olhos, melhor do sopro, das palavras da Ponto.

Em o Sopro, deslocando a análise da Michel Foucault de Las Meninas de Velásquez, para a estrutura da peça, esta também levanta questões sobre a perceção do que é verdade ou do que é representação teatral. Vai ao longo do tempo recolocando o espetador em espaços e momentos diferentes. Constrói uma relação entre a peça, a Ponto e o espetador, tudo isto através dos textos dos atores. No inicio de o Sopro, somos transportados para uma conversa onde o diretor atual (Tiago Rodrigues) conversa com a Ponto (Cristina Vidal) sobre uma peça que ele quer escrever com ela.

Cena 3
Diretor:
“Viver na fronteira. Viver no lugar de passagem. Viver entre os bastidores e o palco. Viver na ponte que liga a margem da realidade à margem da ficção. Saber mergulhar no leito do rio que corre entres essas duas margens. Saber nadar na corrente das palavras que separa o mundo do palco…. Aguardar pelo acidente, o erro que nos relembra que o teatro faz parte do mundo…quando o ator se relembra que é imortal, que não é a personagem perfeita mas um corpo emprestado e falho…saber salvá-lo com palavras, soprar-lhe ao ouvido”…”E hoje, porque a realidade nos afoga, porque a vida inundou as margens da ficção, é isto que temos de mostrar: o momento em que o salva-vidas mergulha nas águas do rio…Escrever a história do acidente, a história do salva-vidas durante o acidente…”

Cena 4
Diretor:
“…Ela passa os dias naquele antigo teatro vazio como se fosse a memória ou o coração ou os pulmões do teatro.”
Ponto:
“…custa-me muito imaginar este teatro em ruínas. Não é só por ter trabalhado aqui a vida toda. É que este é o primeiro teatro que alguma vez entrei.
Tinha cinco anos. A minha tia trabalhava cá, na bilheteira…um dia trouxe-me…”

Depois a ponto começa a contar a sua história ao diretor, durante a conversa sobre a peça, deslocando o espetador da mesa do café, para 1978, para certas peças que a marcaram, para momentos da sua vida profissional, momentos da vida pessoal de uma antiga diretora ou de atores.

Ponto:
“Ela andava de um lado para o outro do palco, como os leopardos no jardim zoológico. «Um leão não pode amansar um leopardo» Ricardo II primeira cena primeiro ato.”
“…a minha tia já estava a levar-me para a bilheteira com ela quando vieram dizer-nos que a Diretora autorizava que eu visse a peça, desde que ficasse escondida na caixa do Ponto, para o público não me ver.”
“Vi a minha primeira peça de teatro aos cinco anos, escondida na caixa do ponto…Com as pontinhas dos dedos a tocar o palco. Assim. Com muito cuidado. Como se tivesse medo de me queimar. A certa altura o ator teve uma branca” …” Nem era uma frase, só uma série de sons colados uns aos outros. Era uma longa palavra sussurrada” …” Mas quando falou o ator que fazia de Rei Henrique” …” aquela frase já queria dizer qualquer coisa” …” Quando isso aconteceu, as pontinhas dos meus dedos sentiram o palco a escaldar.”
“... mas não gosto muito da ideai de contar a minha vida em palco. Eu sou a sombra, estás a ver a minha pele? Não gosto de me mostrar. Nunca quis mostrar-me. Estive sempre ali escondida. Na margem. Ou ali. Na outra margem” …” Somos uma espécie em vias de extinção. E quando desaparecermos talvez ninguém dê conta…”
“…A minha glória é ninguém saber que existo…”
“Era a estreia do nosso Dinis e Isabel, do António Patrício, 5 de outubro de 1984…era a Diretora que fazia de Isabel…”
“…e nesta altura o Dinis devia fazer uma pausa e pensar, ela faz a pausa e pensa, mas a pausa nunca mais acaba, parece-me que aquilo é pensamento a mais e lanço-lhe o início da fala «Só a morte é real…», mas ele nada…e aqueles segundo que parecem horas, dias, meses anos de silêncio a passar…talvez seja intencional, uma pausa dramática, porque nas estreias é habitual os atores esticarem um bocado as pausas…mas a diretora deitada na cama a fazer de Isabel morta exala um suspiro de impaciência e eu sopro de novo”…”e o Dinis nada, e só então é que me lembro de uma vez ele ter dito que era surdo de um ouvido…não tenho outra hipótese senão falar mais alto e digo «Só a morte é real, e quando a vemos, tudo recua em corredores de sonho…», ouve-se a minha voz até à ultima fila da plateia…”
“Nessa noite quando chego ao beberete da estreia há um crítico de um jornal que começa a aplaudir, nessa altura havia críticos nos jornais…e diz «Parabéns à Ponto, que esteve magnífica no início do quinto ato! Que voz! Que dicção!»”
“Percebes que a única parte de mim que pertence ao palco é a pontinha dos dedos?”

Na cena 11, durante o relato da sua história, a Ponto sopra o texto a um ator, ao qual ela dá o nome fictício de Verchínin, a certa altura começa a contar ao espetador a vida do ator, e este começa a repetir como se de uma peça de teatro se tratasse. Ao servir-se de Verchínin como interlocutor entre o publico e a Ponto, desloca-nos para dentro da peça.

Ponto
“E o público ria sempre. Tanto quando ele acertava, como quando se enganava” …” Eu chamo-lhe Verchínin porque ela era filho de latifundiários…”
Verchínin
”Eu chamo-lhe Verchínin porque ele era filho de latifundiários…”
Ponto
Mas era a ovelha negra da família.”
Verchínin
“Mas era a ovelha negra da família. Tinha-se medito no teatro para irritar o pai…”

Na cena 17, Tiago Rodrigues, através da memória da Ponto, conta um momento da vida da antiga diretora. Nesta cena tem um momento muito particular, porque nela os atores (Diretora e Verchínin) estão a representar um diálogo sobre uma consulta médica que a diretora teve, à qual Verchínin não foi. No inicio o texto poderá confundir o espetador e faze-lo entender que o ator que faz de Verchínin está a representar o médico, mas na realidade trata-se de um “ensaio”, uma recriação do momento da consulta numa conversa entre a Diretora e Verchínin. Os atores estão a representar atores, que por si, estão a representar um momento passado. Tudo isto, sempre, através do sopro da Ponto.

Verchínin
“As notícias não são boas, mas há razões para manter a esperança”
Diretora
“E agora? Tenho muitas hipóteses?”
Diretora
“Podes repetir esta ultima frase, mas só um pouco menos honesto.”
Verchínin
“Menos honesto?”
Diretora
“Menos convicto, talvez.”
Verchínin
“Dás-me a deixa?”

Num certo momento do texto, a Ponto intrometesse na conversa, como se pudesse alterar o passado pelo poder que tem em sobrar o texto aos atores. A diretora primeiro diz o texto tal como foi dito pela Sopro, mas depois vira-se para ela e conversa com ela. Mais uma vez, através do texto, somo transportados para outro momento fora da peça, para o momento da ficção pessoal da Ponto, daquilo que ela queria dizer, mas não disse.

Ponto
Sim, por favor fica, Verchínin
Diretora
Sim, por favor fica Verchínin…
Virando-se para a Ponto
A atriz procura no texto a frase soprada
Diretora
Onde é que isso está?
Não podes fazer isso. Não podes mudar o texto. Podes recordar tudo, mas não podes inventar. Não podes mudar o que está escrito. Não podes. Tu és a Ponto. Tu não estavas lá. E se estavas lá estavas na sombra. Eu estava lá sobre as luzes. Eu sei o que disse. Eu disse…

E no fim da peça a Ponto, coloca-se no papel de atriz, diz um relato imaginário sobre o que teria sido se ela tivesse agido num momento em que a diretora teve uma branca, a um momento do passado imaginário da Ponto.

Ponto
“Estávamos na última cena. A minha Diretora fazia a Berenice
E a Ponto começa a interpretar a Diretora interpretando Berenice,
Muda o texto quando chega ao Ponto onde a Diretora teve uma branca
Li na página
Levai longe de mim ferros, suspiros, zelo.
Mas, quando ia soprar o verso seguinte, não saiu nada.
“Mandaram fechar a cortina. O público aplaudiu, como se tudo estivesse normal” …” No dia seguinte já não houve espetáculo. E é isto. Se alguma vez estivesse sozinha no palco, se falasse diretamente com o público, terminava essa cena. Seria muito breve. Apenas setes versos” …” Só aquilo que o público nunca chegou a ver…”

«Levai longe de mim ferros, suspiros, zelo.
Adeus, ao universo os três somos modelo
Do amor que foi mais terno e foi mais infeliz
cuja história de dor nele guarda se diz.
Esperam-me. Aqui não vou- Não me sigais. Enfim,
(para Tito) Senhor, mais uma vez, adeus pois.»

E depois o Antíoco diria:
«Ai de mim!»

1, 2 e 3 - Excertos da entrevista de Tiago Rodrigues com Marion Canelas para o site do Festival e disponível na integra em

4 - Martin Amis, Experience, 2001, Londres, ISBN-10: 0099285827

5 - Michel Foucault, As Palavras e as Coisas – Uma Arqueologia das Ciências Humanas, 1966, Edições 70, 2014, Lisboa, ISBN: 987-972-44-1810-0

Excertos da peça retiradas de: Tiago Rodrigues, Como Ela Morre – Sopro, 2017, Teatro Nacional D. Maria II, Bicho do Mato, Lisboa, ISBN 978-989-8349-53-8

Fotografias retiradas do site do 71º Festival de Teatro de Avignon, França