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Em 1985, surge o
primeiro romance do escritor alemão Patrick Süskind, atualmente com 68 anos. O Perfume, História de um assassino
atingiu os quinze milhões de exemplares em quarenta línguas e a sua aceitação
foi tão bem-sucedida que o realizador Tom Tykwer transporta-o para o grande
ecrã, em 2006.
«Um recém-nascido não é um ser humano, mas
apenas um esboço e a sua alma ainda não se encontra formada.» (pp.16)
A
17 de julho de 1738, Jean-Baptiste Grenouille nasce num dos locais mais
nauseabundos de Paris numa banca de peixe. Teria tido a mesma sorte dos seus
quatro irmãos, não fosse ter começado a chorar, atraindo para si o olhar das
autoridades que se encarregaram de o deixar ao cuidado de uma ama. Uma, não,
várias, já que estas se recusaram a albergar uma criança inodora. Para a
mentalidade francesa do século XVIII, este seria sinal de algo maléfico e, por
isso, digno de medo.
Acaba
por ser acolhido por Madame Gaillard que não vê nele mais do que uma fonte de
sustento e Grenouille recebe o mesmo tratamento que as outras crianças. Também
estas se sentem incomodadas com a sua presença e rapidamente se afastam, ainda
que o tenham tentado asfixiar para pôr fim ao tormento que lhes causava. Jean-Baptiste
revela-se, contudo, resistente a todas as intempéries que vai enfrentando,
agarrando-se à vida com “unhas e dentes”.
Mais tarde, é
vendido a um curtidor de peles e aprende o ofício de forma exemplar, cumprindo
com todas as tarefas que lhe eram impostas, mesmo as mais árduas.
Ao longo da sua
infância, o que mais atraía Grenouille eram os cheiros, todos os odores. A sua
memória olfativa permitia-lhe analisá-los, decorá-los, extraí-los dos seus
corpos e matérias e guardá-los no seu mundo interior. Tal era o fascínio que
sentia que passa a viver em função de um único desejo: captar o cheiro mais
perfeito e absoluto. São os odores que movem a ação, do início ao fim. Para
ele, não há cheiros bons ou maus… há apenas cheiros. E o facto do escritor apresentar
uma personagem ausente do seu perfume, da sua identidade, contribui para compreender
o modo como Jean-Baptiste absorve o mundo, conquistado pelo sentido do olfato.
O prodígio do
protagonista tem a particularidade de decifrar o ADN de quem quer que seja e do
que quer que seja, por mais suave ou distante. É a posse de um nariz
sobredotado que tornará Grenouille num perfumista exímio. Dedica-se então
inteiramente ao seu dom, desenvolvendo de forma extraordinária a sua capacidade
olfativa, reconhecendo todas as combinações de essências odoríferas, produzindo
os mais excecionais perfumes.
Numa das suas
saídas, depara-se com um perfume inebriante, hipnotizante. O perfume de uma
belíssima jovem ruiva atrai-o de forma arrebatadora de tal modo que pretende, a
todo o custo, apropriar-se daquele aroma que emana paixão. Surge então a
tentação: apoderar-se daquele perfume e inspirar amor nos outros. Mata a jovem,
mas em vão. O cheiro desaparece com a sua morte. É o seu primeiro de muitos
crimes.
Decide tornar-se
aprendiz de perfumista para dominar as técnicas de destilação e extração de
perfume com o famoso Giuseppe Baldini.
Süskind aproveita a
estadia de Grenouille em casa do parfumeur
para mostrar aos leitores a história da perfumaria e as diferentes tarefas que
envolvem o ofício.
Terminada a sua
missão, parte em direção a Grasse e isola-se durante sete anos para estruturar
o seu projeto irrepetível – criar o Perfume, único, sublime, detentor de todos
os odores, detentor da vida e da própria morte. É assim que, pela violência,
pelo assassínio de dezenas de jovens mulheres, a personagem percorre um intenso
caminho carregado de odores, selecionando-os cuidadosamente, criando a essência
perfeita que culminará num final exemplar e inesperado.
«Um poder superior ao poder do dinheiro ou ao poder do
terror ou ao poder da morte: o poder invencível de suscitar amor nos homens.» (pp. 270)
Esta é uma obra
horrivelmente bela e espetacular, inebriada de uma misericórdia crua e despida
de sentimentos por parte do protagonista.
Uma vez iniciada a
leitura, é impossível parar. O mundo de Jean-Baptiste Grenouille é belo,
misterioso, original, sedutor. Uma história contada plenamente na perspetiva do
narrador, omnipresente, que oferece ao leitor a experiência única de conhecer
intimamente a personagem, os seus pensamentos, as suas decisões, os seus
motivos.
Ao longo desta
caminhada, é possível acompanhar Grenouille na sua jornada em busca de um sonho
que, ao início, não é o que parece. Rodeado por uma multidão que nunca nutriu
por ele qualquer sentimento de amor, que sempre o rejeitou, o protagonista age
com o intuito de encontrar o odor que o tornará amado por todos. E é assim
movido pela captura de odores capazes de despertar o verdadeiro amor.
«Jean-Baptiste Grenouille, nascido sem odor no lugar mais
fedorento do mundo, saído do lixo, da lama e da podridão, ele que crescera sem
amor e vivera sem o calor de uma alma humana, meramente impulsionado pela
revolta e pelo nojo, pequeno, corcunda, coxo, feio, mantido à distância,
abominável tanto por dentro como por fora – ele havia conseguido tornar-se
simpático aos olhos do mundo. O que era isso de «tornar-se simpático»? Ele era
amado! Venerado! Adorado!» (pp. 258).
Personagem complexa,
desperta repulsa e ódio, mas também não deixa indiferentes aqueles que
compreendem os seus atos motivados pelo desejo de cumprir com o seu sonho.
O Perfume é uma obra que
incomoda, que causa repúdio, contudo, o autor consegue prender a atenção do
leitor porque é muito mais do que a história de um assassino, é também
desvendar o mistério de uma alma mergulhada nas trevas.
Patrick Süskind
capta brilhantemente a realidade histórica e social da época. Através da
descrição inicial do fedor da capital francesa do século XVIII, cria assim um
enorme impacto no leitor que vivencia uma experiência onírica, maravilhosa,
terrível, absurda. Os detalhes, a minúcia, os pormenores são enriquecidos com
sensações olfativas e visuais que convidam o leitor a embrenhar-se nas ruas
parisienses onde os cheiros mais pestilentos sobressaem.
O autor presenteia
os leitores com descrições paisagísticas e ambientes que transpiram emoções,
incitando-os ao deslumbramento. As flores destiladas são quase descritas como
se humanas fossem, sem qualquer sinal de compaixão por parte do assassino que
mata os seus belos espécimes, obcecado com a concretização do seu plano.
A ação centra-se em
Jean-Baptiste que preconiza a própria morte. É o seu grito pela vida que
condena a mãe à forca, é o seu instinto de sobrevivência que provocará a morte
de outros.
Süskind consegue
transmitir a construção psicopática de uma figura que mata, que não sente
qualquer remorso pelos seus atos, que não refreia os seus impulsos. Por isso,
Grenouille é apresentado como uma carraça “que se faz deliberadamente pequena e
insignificante para que ninguém a veja nem a esmague. A carraça solitária,
fechada e escondida na sua árvore, cega, surda e muda, e apenas ocupada durante
anos a fio a farejar nos lugares à sua volta o sangue dos animais que passam e
que jamais atingirá pelos seus próprios meios.” (pp. 29).
À medida que o
enredo se vai adensando, o escritor desvenda o que está por detrás das suas
atitudes e dos seus crimes, revelação assumida por Grenouille que, no momento
do seu julgamento e execução, esclarece que, afinal, a sua conduta apenas se
deve ao ódio que sente pela humanidade.
«Aquilo que desde sempre tinha constituído a sua ambição,
ou seja, que os outros o amassem, tornava-se-lhe insuportável no instante do
sucesso, porque ele não os amava, odiava-os.» (pp.
259)
Ironicamente,
Patrick Süskind oferece à sua personagem a mais cruel das mortes, desencadeada
pelo perfume fatal que seduz desenfreadamente quem com ele tenha contacto.
Curiosamente,
Grenouille constata que nunca será amado pela pessoa que é, mas única e exclusivamente
por ação da sua obra-prima, até porque ele só desperta indiferença pela sua
falta de odor. E é nesse sentido que o interveniente decide morrer com a ajuda
do seu bem mais precioso, da sua mais perfeita obra de arte, morte essa
despoletada por um excesso de amor, despoletada pelo odor supremo cujo efeito
se torna devastador.
«Não tinha o mínimo desejo de viver. Queria chegar a
Paris e morrer. Era isso que queria.» (pp.269)
«Sentiam-se extraordinariamente orgulhosos. Era a
primeira vez que faziam qualquer coisa por amor.» (pp.
273)
Um livro a
considerar por quem aprecia histórias inseridas em ambientes realistas; um
livro que não esquece nenhum pormenor, por mais repugnante e delirante que
seja; um livro que incute sensações controversas.
Um autor que se
destaca pela sua arte de cativar, pela escrita magistral; um autor com um
estilo que provoca os mais horripilantes pensamentos, germinando reações
diversas.
Uma obra marcante na
literatura dos finais do século XX capaz de expor a essência mais profunda do
ser humano.
