quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Ana Hatherly – modos de pensar o Barroco

Da escrita à pintura e do texto como imagem ao desenho como escrita, passando por variadas artes plásticas, domínios literários e científicos, Ana Hatherly (1929-2015) afirmou-se como um marco do experimentalismo português do século XX, que se manifestou um pouco por cada área em que se interessou. Professora, realizadora, ensaísta, poetisa, tradutora, investigadora e artista plástica, reuniu em vida uma obra muitas vezes pautada pelo seu assumido interesse pelo período barroco; não apenas como corrente estética mas também enquanto uma forma cultural de ver o mundo.
Daqui, parte a premissa para a nova exposição temporária do Museu Calouste Gulbenkian, Ana Hatherly e o Barroco - Num Jardim Feito de Tinta, sob a curadoria de Paulo Pires do Vale e com a colaboração de Nuno Vassallo e Silva, que propõem relacionar as variadas incursões da artista nas artes plásticas (e não só) com a estética, literatura e pensamento barroco, que esta tanto estudou.

Reunindo dezenas das suas obras, realizadas em diferentes formatos e conjugadas com várias outras dos séculos XVII e XVIII, a exposição cruza assim várias épocas, autores e meios distintos, apresentando uma estrutura operativa que se repete no decorrer da mesma. Dividindo-se em quatro núcleos correspondentes a quatro categorias essenciais do Barroco (de época, culturais, psicológicas, filosóficas e de estilo), retiradas e sintetizadas dos ensaios da poetisa por Paulo Pires do Vale, ao longo do percurso expositivo é possível visitar ideias como “o Mundo enquanto Labirinto; a importância do Lúdico; a Vida como Nada diante da Morte; a Alegoria e a folia da Interpretação; o Diálogo oblíquo entre pintura e poesia; e a Metalinguagem da obra de arte que se reflete a si mesma”, um percurso que sublinha não apenas a continuidade histórica e cultural, mas também as descontinuidades – outro dos temas que pauta esta exposição: a história que se escreve pelos autores contemporâneos, olhando para os seus antepassados; a perspetiva histórica inevitavelmente enviesada pelo que a contemporaneidade escolhe valorizar do passado; a subversão na adaptação de elementos antigos a um contexto moderno que rompe com a linearidade da história, criando uma agitação
consciencializadora. 
Loom, sem data. Fotografia de João Profírio

Nesta lógica, a entrada na exposição é marcada pelo evidente contraste com que os visitantes se deparam na primeira sala, e que constitui uma introdução e quase-síntese da mostra: no meio do espaço, mas não centralizado, ergue-se um plinto com uma escultura de Ana Hatherly, Loom (sem data), um prisma retangular em vidro acrílico colorido, numa forma em ascensão que remete para a figura de uma chama. Na parede imediatamente seguinte, um quadro de Josefa de Óbidos do século XVII, Transverberação de Santa Teresa. A relação? Com um mote para a exposição enunciado numa parede dessa mesma sala – um texto de Hatherly sobre a subversão da continuidade histórica – concluimos que este cruzamento, proporcionado pelo curador, reflete a chama metaforicamente barroca, que jorra em êxtase, exuberância, fulgor, dramatismo; a mesma chama que perfura Santa Teresa, numa interpretação contemporânea da artista sobre esse mesmo fogo, reinventando o nosso olhar sobre o Barroco, numa nova conceção do passado.

Os Anjos Suspensos, 1998.
Na sala seguinte, torna-se percetível ao público o formato da exposição e o que vai poder ser encontrado nas próximas salas. Uma nova categoria do Barroco enuncia-se (o Labirinto) e o espaço é ocupado por uma vitrina ampla que preenche o centro da divisão, onde encontramos diversos livros (analisados ou indicados pela artista nos seus ensaios) dos séculos XVII e XVIII, que refletem essa pesquisa científica de Ana Hatherly pelas mais remotas raízes da visualidade da língua e pelas primeiras manifestações de poesia visual, conjugadas com a exposição da sua própria obra literária. Nas paredes, encontram-se desenhos e pinturas da artista, em que curiosamente o seu conhecido estilo de utilizar graficamente a palavra como mancha e desenho apresenta por diversas vezes uma caligrafia indecifrável, que convida o observador a sucessivamente aproximar-se da obra na procura de a ler enquanto texto, por estar habituado a orientar-se no mundo ao conseguir compreender palavras e atribuir-lhes significados concretos, aqui perdidos labirinticamente nas formas esvoaçantes que representam mais do que texto e simultaneamente mais do que o próprio desenho ou pintura.

Num formato expositivo bastante pragmático e intuitivo, Num Jardim Feito de Tinta condensa as complexidades conceptuais e a versatilidade artística de Ana Hatherly entre várias obras barrocas emprestadas por diversos organismos museológicos e fazendo ainda recurso às próprias coleções da Gulbenkian, o que nos permite, ao caminhar por esta exposição, encontrar novas leituras do barroco na obra de Hatherly, numa relação não tipicamente feita, e indica-nos ainda novas formas de ver e construir esse movimento, sem se perder o foco nas conhecidas lógicas da escrita da artista enquanto “uma pintura de signos”, fruto do seu empreendimento de vida na arqueologia da língua, que a levou às origens e eterna exploração das possibilidades visuais da palavra e da escrita.

A exposição Ana Hatherly e o Barroco — Num Jardim Feito de Tinta vai estar patente no piso inferior do Museu Calouste Gulbenkian até 15 de janeiro de 2018.