quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Para que o céu não caia, de Lia Rodrigues

 No passado mês de


Dezembro de 2017 Lia Rodrigues estreou em Portugal o seu último espectáculo de dança contemporânea, Para que o céu não caia, na Culturgest de Lisboa.
 Lia Rodrigues (São Paulo, 1956), grande referência na dança contemporânea desde os anos 70, no Brasil e internacionalmente, estreou a sua última peça/projecto em Portugal nos passados dias 13, 14 e 15 de Dezembro em Lisboa. É a sua mais recente presença desde o espetáculo Pindorama no Serralves em Festa em 2014.
 Este projecto/espetáculo foi criado na periferia do Rio de Janeiro, no complexo da Maré, onde desde 2004 a Lia Rodrigues Companhia de Danças vem desenvolvendo colaboraçõess e ações artísticas e pedagógicas na favela da Maré, uma das maiores da cidade. Desta trama de parcerias surgiu o centro de Artes da Maré em 2009, para onde a sede da Companhia foi transferida, dando início à criação da Escola Livre de Danças da Maré, que fornece aulas gratuitas a toda a comunidade.
 A peça Para que o céu não caia, foi iniciada neste contexto socio-cultural e espacial, onde se desdobrou da Maré para o Mundo. Um trabalho intensivo de 6 meses, com base em oficinas de experimentação, onde o corpo da peça, e dos(as) bailarinos/as, era moldado por todos/as intervenientes em cada oficina, cada ensaio. Os bailarinos/as da Companhia de Lia Rodrigues, juntamente com os 18 jovens do Núcleo 2 da Escola Livre de Danças da Maré e duas estagiárias, formaram, com a coordenadora e coreógrafa, uma massa plástica de criação, interação e reflexão sobre o corpo, para o corpo, no corpo, para o público. O processo criativo começa com a interação e questionamento da população da maré, onde os/as bailarinos/as  percorreram as ruas da Maré e pediram a mais de cem para responderem, arbitrariamente, a um questionário produzido coletivamente. A partir dessa experiência, os bailarinos/as e estudantes criaram um exercício coreográfico que foi o início do processo de criação de Para que o céu não caia.
 
O livro A que do céu de Davi Kopenawa (xamã Yanomami) e Bruce Albert (antropólogo francês) foi a referência inspiracional e motivadora desta concepção sensível de Rodrigues.
 Segundo concepção de mito do fim do mundo do povo Yanomami, relatado no livro, rompida a harmonia da vida no universo, o céu - que na língua homónima é entendido por “aquilo que está acima de nós” - desabada sobre todos/as os que estão abaixo dele, e não apensas em quem reside nas florestas, como dos “brancos” também.
“ A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruíla. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os mamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morremos, um atrás do outro, tanto os brancos quantos nós. Todos os mamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar” (KOPENAWA, ALBERT, 2010).
Para que o céu não caia reflete e questiona: “ Como imaginar formas de continuar e agir?”; “ O que cada um de nós pode fazer para, a seu modo, segurar o céu?”. A mais verdadeira solução encontrada por este corpo artístico para a indubitável queda do céu é dançar! Establecendo um paralelismo das atrocidades a que o povo Yanomami foi e continua a ser submetido ao seu contexto social na periferia do Rio de Janeiro, Rodrigues afirma: “ Na Maré nós dançamos no ritmo das máquinas e carros, helicópteros, sirenes, nós dançamos sob um calor escaldante, nós dançamos com chuva e tempestade, nós dançamos como uma oferenda e como um tributo, para não desaparecer, para durar e para apodrecer, para mover o ar e para se expandir, para sonhar e para visitar lugares sombrios, para virar vaga-lume, para sermos fracos e para resistir. Nós dançamos para encontrar um jeito de sobreviver neste mundo virado de cabeça para baixo. Dançar para segurar o céu. É o que podemos fazer. Para que o céu não caia…dançamos.”
 As indicações iniciais dos assistentes de sala, provocam desde aí, um sentimento de estranheza e confusão, a alguém que pensava que iria assistir a mais um espetáculo nas confortais cadeiras de veludo vermelho da Culturgest. Um comprimido de descompressão após um dia de trabalho rotineiro. É nos indicada outra porta de entrada que ,curiosamente, dava para o próprio palco. Lentamente o público vai-se dispondo no palco, e se enquadrando no espaço, tentando perceber o que estava ou estava para acontecer ali, sentindo-se quase que no “lugar errado” num misto de desconforto e mistério.  A luz amena e quente, juntamente com o café moído disposto ao redor do espaço pelos bailarinos/as que já deambulavam pela sala, ainda em preparação, dilui a relação de palco/plateia numa só mancha coletiva.
 A peça inicia-se quando os 12 bailarinos/as se dispõem numa das paredes paralelamente e de despem, para a entrada no estado perfomático. Cada um/a abre a mão em concha para mergulhar no monte de café que tinham à sua frente, percorrendo o café pelo corpo de forma lenta e intensamente. Desde de o corpo virar uma mancha viva de café, e de essa mancha se ter tornado na sensação corpo-olfativa predominante e fascinante aos mesmo tempo, a concha é, então soprada, rasgando-se o pó de café nos feixes de luz desenhados Nicolas Bourdier. Este sopro chegou como um arrepio à plateia que permanecia ainda hesitante. Dá-se um descolar do plano do elemento café em direção ao próprio corpo coletivo que observava onde, os bailarinos/as começam a aproximar -se lentamente, fitando cada indivíduo/a num momento duradouro, como se fosse o seu próprio espelho. Seguidamente são colocados panos sobre as cabeças dos corpos performáticos, onde estes, mudando totalmente a sua postura corporal e emocional, personificam um corpo de dor e sofrimento, esfregando-se e arrastando-se em angústia pelo chão do palco. Gritos, gemidos e tremores vocais abstractos de profundo desespero e dor se prolongam pelo eco da sala, que ecoa dentro do universo sensível do próprio público. O céu estava a começar a cair, e estavam todos/as debaixo dele, fazer sentir, em espelho, ao público as suas angústias pessoais e enquanto habitantes do mesmo céu.
Um momento de tremor se instala no espaço performático, que vibrou por bastante tempo até acalmar, dando tempo, a quem lá estava presente, de o digerir. Depois do caos e da dor visceral surge uma momento de cura. Os performers instalam-se lado a lado, cada um intervindo com a sua caixinha de elementos, sentados num banco baixo (como se fosse o banco do pajé) ecoando a canção de Maria Bethânia para Oxum “nhem-nhem-nhem ô xorodô/ É o mar, é o mar/Fé-fé xorodô”. É vestida uma nova pele, sob a presente coberta de café e argila, e se inicia a transformação do corpo para a libertação pela dança. É o momento pós-apocalíptico. Já se preveu a chegada da queda do céu, já se viveu a angústia da sua queda, ele mesmo já caiu e agora o que temos, o que restou dele. Surge então um espaço novo, uma terra virgem para semear novos movimentos, semear uma nova concepção do mundo, através da dança. Esta história transmitida pelo corpo e movimento poético é fechada numa dança coletiva circular, tal como a dança ritual das festas reahu dos yanomami. Os corpos, que vibram, se agitam, em movimentos fortes e rápidos, cobertos de acafrão, viram um círculo energético que contagiam todo o público e que lhe provocam uma vontade de participar e de converter nestes tons de castanhos e amarelos, misturados em suor, cuspe e lágrimas.
 É difícil de deixar a sala, ainda vibrava uma grande bola de energia e emoção, mesmo passados 10 minutos de a peça ter terminado e já ter chegado o assistente de sala  a indicar-nos para sair. O público voltou para casa, saindo por uma porta que nunca tinha visto. Uma porta que contava a história do povo Yanomami, de todo o seu sofrimento e de toda a sua luta e resistência pela preservação e demarcação da sua cultura.
O fim da peça termina com uma conversa com a coreógrafa, onde se notava uma excitação e uma vontade por exteriorizar o que se sentiu. Lia Rodrigues falou sobre o processo de criação e desmistificou algumas dúvidas relativas a certos momentos do espectáculo, levantadas pelo público entusiasmado e curioso naquela roda de conversa. Contou que o espectáculo foi visto pessoalmente por Davi Kopenawa, duas vezes. No segundo dia, o xamã Yanomami levou o seu cocar, como forma de profundo agradecimento.