quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Hannah Arendt

 

Hannah Arendt (2012), de Margarethe von Trotta, é uma obra muito bem conseguida. Baseada na história real da filósofa política do mesmo nome, este filme alemão abre ao espetador uma janela direta para o ano de 1961. Faz de nós testemunhas presentes, ainda que invisíveis e não-comprometidas.
Vamos conhecendo, ao longo do enredo, a vida desta filósofa de renome; a sua condição de judia alemã imigrante, os seus amigos, colegas, o seu cônjuge, a sua carreira como professora universitária, o sucesso da sua obra literária, o seu hábito de fumar, a sua devoção ao ato de pensar, o seu temperamento firme e assertivo, a sua honestidade intelectual, as suas vulnerabilidades… As cenas vão-se desenrolando com uma distinta naturalidade, acompanhadas pelo ocasional momento de silêncio introspetivo. Nunca aborrecida, nem acelerada, esta longa-metragem dá ao espetador a oportunidade de fazer as suas observações e raciocínios, e não descora de pequenos pormenores e gestos que lhe conferem um caráter quotidiano, isto num sentido realista e familiar.
A história centra-se num dos episódios mais marcantes da vida de Hannah Arendt (1906-1975); o julgamento do nazi Adolf Eichmann e acontecimentos consequentes. “Israel Captura Chefe Nazi”, é a notícia que introduz este episódio no filme. Hannah, numa carta para o New York Times, voluntaria-se para ir a Jerusalém testemunhar o julgamento enquanto correspondente do jornal. Ao confrontar-se com o homem a ser julgado, “esse predador selvagem (…) exibido numa jaula de vidro”, a filósofa fica surpreendida.

(…)
Eichmann: Como me instruíram a fazer. Eu tinha de seguir ordens.
- Mas era você quem decidia quantas pessoas eram colocadas em cada vagão, não era?
Eichmann: Eu tinha ordens. Se as pessoas eram mortas ou não, as ordens tinham de ser cumpridas. De acordo com o processo administrativo, eu fui apenas responsável por uma pequena parte disto. As outras partes, que eram necessárias até que um destes comboios se pusesse em marcha, foram executadas por outro departamento”

Ele não é nada como eu esperava. (…) ele não é [uma criatura assustadora]. É precisamente isso. Ele senta-se na caixa de vidro como um fantasma. Um fantasma constipado. Ele não é de todo sinistro. É um zé-ninguém” De volta a Nova Iorque, o julgamento de Eichmann inspirou um artigo de mais de 300 páginas que, posteriormente a ser publicado, gerou grande controvérsia.
Década e meia após a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto estava ainda fresco na memória do mundo, em especial na dos sobreviventes dos campos de concentração e detenção, mais ainda para os principais perseguidos, os judeus. Para o mundo, Adolf Eichmann era “um anti-semita comprometido e depravado”, “um monstro”.

Eichmann: Um oficial faz um juramento de fidelidade. Se quebrar esse juramento, então é um vigarista. Ainda acredito nisso. Jurei dizer aqui a verdade. Também via as coisas desse modo na altura. Um juramento é um juramento.
(…)
- Teria morto o seu próprio pai?
Eichmann: Presumindo que ele [(Führer)] o tivesse provado. Se ele o tivesse provado, teria de o fazer por causa do meu juramento.
- Foi-lhe provado que os judeus tinham de ser exterminados?
Eichmann: Eu não os exterminei.”

No entanto, Hannah Arendt, ao testemunhar o julgamento, viu mais longe, “Ele jura que, pessoalmente, nunca fez mal a um judeu. (…) Não é interessante que um homem que fez tudo o que um sistema assassino lhe pediu, que até parece ávido em dar detalhes precisos do seu bom trabalho, que este homem, pessoalmente, não tenha nada contra os judeus? (…) Ele transportava pessoas para a morte, mas não se sentia responsável por isso. Uma vez os comboios em movimento, o trabalho dele estava feito. (…) É um burocrata.”
Mas o artigo de Hannah provocou uma reação amplamente negativa, tendo suscitado críticas ferozes e, até, ataques à sua pessoa em artigos, ameaças, cartas de protesto e mensagens de ódio. Foi acusada de defender Eichmann e os nazis e de desprezar o povo judeu. Antigos amigos e admiradores da filósofa, impuseram-se contra o seu escrito, tendo pelo menos um deles, Hans Jonas, cortado relações com ela. Apesar de tudo isto, Hannah manteve-se firme às suas convicções, recusando-se a responder a críticas que não viam o seu artigo pelo que este realmente era.

Hannah: Ele protestou repetidamente, contra as afirmações da acusação, que nunca fizera nada por iniciativa própria, que não tinha quaisquer intenções, boas ou más, que tinha apenas obedecido a ordens. Este apelo tipicamente nazi torna claro que o maior mal do mundo é o mal cometido por zés-ninguém, o mal cometido por homens, sem motivo, sem convicção, sem corações perversos ou vontades demoníacas, por seres humanos que se recusam a ser pessoas. E foi a este fenómeno que chamei a «banalidade do mal». (…) Ao recusar ser uma pessoa, Eichmann desistiu completamente da característica que mais define o humano, a de ser capaz de pensar. E, consequentemente, deixou de ser capaz de fazer juízos morais. Esta incapacidade de pensar tornou possível que muitos homens comuns cometessem atos maldosos a uma escala gigantesca, como nunca antes se vira. (…) A manifestação do vento do pensamento não é conhecimento, mas a capacidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio.”

O filme expõe de forma brilhante o tema em questão sem ser penosamente denso e, no entanto, aponta tudo de mais relevante que esteve no cerne deste acontecimento histórico. O espetador testemunha o desenlace da controvérsia, as suas repercussões na vida de Hannah Arendt, a sua perseverança e resistência à opinião comum.
Trata-se de uma obra que nos revela toda uma nova visão do mal. É simples imaginar o criminoso como um ser de uma perversidade irrecuperável, no entanto, Eichmann era um sujeito comum, medíocre, “uma gota de água no oceano sem sentido ou sucesso”, como ele próprio o disse. O perigo do não-pensar é assim revelado, e a dimensão das suas consequências exposta. No regime ‘certo’, quantos Eichmanns poderiam surgir de entre nós? A determinado ponto, será que já não estará a acontecer nos tempos de hoje?
Antes de terminar, Hannah Arendt deixa-nos com um último pensamento excecional: “Estão todos a tentar provar que estou errada. Mas ninguém se apercebeu do meu único verdadeiro erro. O mal não pode ser simultaneamente banal e radical. O mal é sempre apenas extremo. Nunca é radical. Só o bem pode ser profundo e radical.”