Hannah Arendt (2012),
de Margarethe von Trotta, é uma obra muito bem conseguida. Baseada
na história real da filósofa política do mesmo nome, este filme
alemão abre ao espetador uma janela direta para o ano de 1961. Faz
de nós testemunhas presentes, ainda que invisíveis e
não-comprometidas.
Vamos conhecendo, ao longo do enredo, a vida
desta filósofa de renome; a sua condição de judia alemã
imigrante, os seus amigos, colegas, o seu cônjuge, a sua carreira
como professora universitária, o sucesso da sua obra literária, o
seu hábito de fumar, a sua devoção ao ato de pensar, o seu
temperamento firme e assertivo, a sua honestidade intelectual, as
suas vulnerabilidades… As cenas vão-se desenrolando com uma
distinta naturalidade, acompanhadas pelo ocasional momento de
silêncio introspetivo. Nunca aborrecida, nem acelerada, esta
longa-metragem dá ao espetador a oportunidade de fazer as suas
observações e raciocínios, e não descora de pequenos pormenores e
gestos que lhe conferem um caráter quotidiano, isto num sentido
realista e familiar.
A história centra-se num dos episódios mais
marcantes da vida de Hannah Arendt (1906-1975); o julgamento do nazi
Adolf Eichmann e acontecimentos consequentes. “Israel Captura Chefe
Nazi”, é a notícia que introduz este episódio no filme. Hannah,
numa carta para o New York Times, voluntaria-se para ir a Jerusalém
testemunhar o julgamento enquanto correspondente do jornal. Ao
confrontar-se com o homem a ser julgado, “esse predador selvagem
(…) exibido numa jaula de vidro”, a filósofa fica surpreendida.
“(…)
Eichmann:
Como me instruíram a fazer. Eu tinha de seguir ordens.
-
Mas era você quem decidia quantas pessoas eram colocadas em cada
vagão, não era?
Eichmann:
Eu tinha ordens. Se as pessoas eram mortas ou não, as ordens tinham
de ser cumpridas. De acordo com o processo administrativo, eu fui
apenas responsável por uma pequena parte disto. As outras partes,
que eram necessárias até que um destes comboios se pusesse em
marcha, foram executadas por outro departamento”
“Ele não é nada como eu esperava. (…) ele
não é [uma criatura assustadora]. É precisamente isso. Ele
senta-se na caixa de vidro como um fantasma. Um fantasma constipado.
Ele não é de todo sinistro. É um zé-ninguém” De volta a Nova
Iorque, o julgamento de Eichmann inspirou um artigo de mais de 300
páginas que, posteriormente a ser publicado, gerou grande
controvérsia.
Década e meia após a Segunda Guerra Mundial, o
Holocausto estava ainda fresco na memória do mundo, em especial na
dos sobreviventes dos campos de concentração e detenção, mais
ainda para os principais perseguidos, os judeus. Para o mundo, Adolf
Eichmann era “um anti-semita comprometido e depravado”, “um
monstro”.
“Eichmann:
Um oficial faz um juramento de fidelidade. Se quebrar esse juramento,
então é um vigarista. Ainda acredito nisso. Jurei dizer aqui a
verdade. Também via as coisas desse modo na altura. Um juramento é
um juramento.
(…)
-
Teria morto o seu próprio pai?
Eichmann:
Presumindo que ele [(Führer)]
o tivesse provado. Se ele o tivesse provado, teria de o fazer por
causa do meu juramento.
-
Foi-lhe provado que os judeus tinham de ser exterminados?
Eichmann:
Eu não os exterminei.”
No entanto, Hannah Arendt, ao testemunhar o
julgamento, viu mais longe, “Ele jura que, pessoalmente, nunca fez
mal a um judeu. (…) Não é interessante que um homem que fez tudo
o que um sistema assassino lhe pediu, que até parece ávido em dar
detalhes precisos do seu bom trabalho, que este homem, pessoalmente,
não tenha nada contra os judeus? (…) Ele transportava pessoas para
a morte, mas não se sentia responsável por isso. Uma vez os
comboios em movimento, o trabalho dele estava feito. (…) É um
burocrata.”
Mas o artigo de Hannah provocou uma reação
amplamente negativa, tendo suscitado críticas ferozes e, até,
ataques à sua pessoa em artigos, ameaças, cartas de protesto e
mensagens de ódio. Foi acusada de defender Eichmann e os nazis e de
desprezar o povo judeu. Antigos amigos e admiradores da filósofa,
impuseram-se contra o seu escrito, tendo pelo menos um deles, Hans
Jonas, cortado relações com ela. Apesar de tudo isto, Hannah
manteve-se firme às suas convicções, recusando-se a responder a
críticas que não viam o seu artigo pelo que este realmente era.
“Hannah: Ele protestou
repetidamente, contra as afirmações da acusação, que nunca fizera
nada por iniciativa própria, que não tinha quaisquer intenções,
boas ou más, que tinha apenas obedecido a ordens. Este apelo
tipicamente nazi torna claro que o maior mal do mundo é o mal
cometido por zés-ninguém, o mal cometido por homens, sem motivo,
sem convicção, sem corações perversos ou vontades demoníacas,
por seres humanos que se recusam a ser pessoas. E foi a este fenómeno
que chamei a «banalidade do mal». (…) Ao recusar ser uma pessoa,
Eichmann desistiu completamente da característica que mais define o
humano, a de ser capaz de pensar. E, consequentemente, deixou de ser
capaz de fazer juízos morais. Esta incapacidade de pensar tornou
possível que muitos homens comuns cometessem atos maldosos a uma
escala gigantesca, como nunca antes se vira. (…) A manifestação
do vento do pensamento não é conhecimento, mas a capacidade de
distinguir o bem do mal, o belo do feio.”
O filme expõe de forma brilhante o tema em
questão sem ser penosamente denso e, no entanto, aponta tudo de mais
relevante que esteve no cerne deste acontecimento histórico. O
espetador testemunha o desenlace da controvérsia, as suas
repercussões na vida de Hannah Arendt, a sua perseverança
e resistência à
opinião comum.
Trata-se de uma obra que nos revela
toda uma nova visão do mal. É simples imaginar o criminoso como um
ser de uma perversidade irrecuperável, no entanto, Eichmann era um
sujeito comum, medíocre, “uma gota de água no oceano sem sentido
ou sucesso”, como ele próprio o disse. O perigo do não-pensar é
assim revelado, e a dimensão das suas consequências exposta. No
regime ‘certo’, quantos Eichmanns poderiam surgir de entre nós?
A determinado ponto, será que já não estará
a acontecer
nos tempos de hoje?
Antes de
terminar, Hannah Arendt
deixa-nos com um último pensamento excecional: “Estão todos a
tentar provar que estou errada. Mas ninguém se apercebeu do meu
único verdadeiro erro. O mal não pode ser simultaneamente banal e
radical. O mal é sempre apenas extremo. Nunca é radical. Só o bem
pode ser profundo e radical.”
