terça-feira, 9 de janeiro de 2018

As galochas e o poder




Para se entrar numa das salas da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, Ano Zero, tinha de se calçar umas galochas. Rubens Mano transladou objectos de um regime para outro, criando uma instalação nos terrenos do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. O lugar, do lado oposto ao da cidade (centro urbano), tem o rio como linha separadora, as pontes como linhas de ligação, a estrada como via de comunicação, o carro como objecto de transporte... Como se representassem os braços de uma ideologia - a do Estado Novo -, os cinco carros de "confins de memória" (um deles com a placa de identificação ESTADO) estavam dispostos quase circularmente acima da linha de água, aludindo à salvação dos significantes de um regime por oposição ao seu afogamento ideológico. Como objectos fora da sua função, compõem agora uma peça de arte: a imagem do fim de uma ideologia. 
Um dos automóveis na sala abandonada era um Citröen DS, uma obra de "arte humanizada", na visão de Roland Barthes, que via o catálogo automóvel, até ao surgimento do DS, enquadrado num "bestiário do poder". Mas, uma vez alienado no poder do Estado Novo, não poderia o DS (déèsse é deusa, em francês) ser visto e querer ser visto como um símbolo do poder? Marx e Engels dizem que em toda a ideologia o homem e as suas relações surgem "invertidos" tal como numa camera obscura ou, neste caso, como o reflexo na água dos cinco automóveis.
A água sobe entre os 300 e os 400 mm de altura, pelo que a forma de andar transforma-se, o som do arrastar/pisar a água cria a acústica que molda o pensamento de quem observa. Uma música (banda sonora) dá ligação às figuras do cenário. A decadência? Talvez a memória de objectos que pareciam estar fechados no esquecimento. Todo o fim de um regime, de um poder, de uma ideologia que parece ali estar representado. Ou o fim de um poder apagado, mas, talvez não totalmente esquecido.
Há uma concepção ideológica que se imagina, agora, derrotada, caída, mas que não está por terra, pois mantém-se acima da linha de água. Os objectos estão sobre troncos de madeira que os elevam enquanto significantes acima da água. A materialidade destes carros, antes utilizados por uma ideologia, como suas formas de representação, sendo uma delas a do carro-estatuto, mantém-se à tona.
Agora sem galochas, o caminho faz-se de volta ao mosteiro, numa linha estrategicamente traçada pelos pensadores da bienal: espreita-se de uma outra perspectiva, em que não se observa a instalação. Neste caminho circular de regresso (quase de eterno retorno), a melodia daquele lugar de representação de um regime vem outra vez aos ouvidos. Imagem acústica.