sábado, 23 de dezembro de 2017

Engenho sem Necessidade e Criação sem Cultura

Pouco depois de uma criança nascer ferramentas são criadas por ela para a ajudar a inteirar-se do mundo. Começa a comunicar e a aprender conceitos da sociedade em que está inserida. Desta forma, todo o seu contacto com a realidade é cortado, sendo substituída por um manto cultural criado pelas gerações anteriores. Nesta sociedade ela não vai poder criar algo completamente novo por estar tão entrelaçada com o manto cultural.

Estará este tal manto a reprimir o potencial de criação humano? Para entreter esta curiosidade, esta fantasia de saber se, fora das condições culturais em que cresceu, seria possível um humano criar algo puro, serão utilizados cenários um tanto exagerados, mas que ajudam neste raciocínio deambulatório.

“A necessidade aguça o engenho” - neste mundo, tal como no nosso, ferramentas vão sendo criadas para ajudar a humanidade em todo o tipo de situações. À medida que são criadas, são também incorporadas no manto cultural. Esta criação de ferramentas leva a humanidade a um ponto em que todas as necessidades foram satisfeitas e, sem necessidade, o engenho torna-se rombo.
Humanidade e cultura são agora uma só entidade, e todas as formas de criação desapareceram. Humanos vivem satisfeitos numa vida completamente banal em que nada é necessário e o único propósito de vida é emaranhar-se em prazeres proporcionados pelo agora manto hiper-cultural. Em suma, estamos perante o desenvolvimento de uma utopia hedonista.
Utopia, mas não para todos, pois o ser criativo que reside no meio de tanta banalidade aprazível está a desesperar. Ele quer criar, mas o quê? Já não existe nada para criar, tudo estagnou. No que se torna no ato criativo final desta humanidade, o ser deixa a sua prole no mundo real fora do manto.

Conseguiria esta geração livre da prisão cultural criar algo puro? Desprovido de restrições criativas criadas pelo manto poderia criar algo completamente novo? Estaremos a presenciar a génese da invenção desprovida de cultura?

A prole inventa novas ferramentas para satisfazer as suas necessidades, representa a realidade que a rodeia na sua criação, e uma neblina começa a formar-se ao seu redor. Estes seres livres procriam e mostram as suas criações aos seus filhos, cada nova invenção aumentando a neblina. Após múltiplas gerações a neblina tornou-se num novo manto hiper-cultural e reencontramos a utopia a que o criativo tentou escapar. Conclui-se que a própria fantasia de criação desprovida de cultura é uma forma de utopia dos criativos.
A Humanidade está presa num ciclo vicioso: o simples ato de criar cria cultura, a única forma de escapar seria destruir a invenção no momento de criação, mas isso também se tornaria num ciclo vicioso em que as mesmas criações eram repetidas eternamente, qualquer progresso desaparecendo.


Felizmente para a nossa Humanidade, utopias são impossíveis e a necessidade não irá desaparecer. Existirá sempre criação humana, mas uma criação impura, contaminada pelo manto cultural, cheio de cópias mastigadas e alteradas para parecerem algo novo.