sábado, 23 de dezembro de 2017

“Shots em movimento”

“Shots em movimento”
ou a prevenção cinematográfica

Vi um filme, vejo muitos, mas este marcou-me para sempre. Marcou, não por ser “o filme” da minha vida ou por ser o que mais me “alterou” emocionalmente, fê-lo simplesmente porque não o consegui ver.
Vejo muitos filme, de todos os géneros, tenho alguma predileção pelos que nos anos oitenta se chamavam de “série B”, mas também por um “bom” Sokurov.
Mas de volta ao “filme”, quero explicar porquê não o consegui ver.

Num dia de tédio resolvi ver uma megaprodução de ação, o “Assassin’s Creed” de Justin Kurzel (2016) e é sobre a minha relação com este, e outros filmes semelhantes que depois me obriguei a assistir, que quero escrever.
Não deviam ter passado mais do que 30 minutos já estava num estado de cansaço demasiado para quem supostamente estaria entediado, com uma ligeira dor de cabeça. Pouco depois saí, para perceber o que me tinha acontecido, tive de voltar a ver o filme, mas desta vez em casa, protegido pelo “pause”.

Pelo que consegui perceber, o “Assassin’s Creed” não foi era o único filme que mais me causava mal-estar, mas foi o primeiro e como tal ganhou direito a referência, outro foi o “King-Kong” de 2005, tem direito a ser referenciado no título deste texto, não por ser mais ou menos incomodo para mim, mas por através da leitura de textos sobre ele ter percebido a razão do meu mal-estar.

Começando pelo início do início, apercebi-me que o incomodo era tanto mental como físico, que tive dificuldade em concentrar-me durante o filme e saí com os olhos muito cansados. O que fez que procurasse saber qual a razão, e é essa razão, melhor dito, a minha interpretação do que aconteceu que se segue.

A Inteligência Visual é a nossa capacidade de contruir de acordo com regras, sem excepção, todo o que vemos. Rudolf Arnheim em “Art and Visual Perception – a psychology of the creative eye”, enuncia que tudo o que construímos visualmente, das cores, às formas, sombras, objetos, imagens compostas, etc., é regido por regras, regras essas que são essenciais sobreponíveis, violáveis, que trabalham em grupo tanto como isoladas, não são estanques, mas sim construídas sobre probabilidades. Arnheim refere que elas não estão “gravadas” na nossa mente, mas são implícitas na maneira como ela funciona.

A inteligência Visual é uma ação cognitiva pode ser descrita pela capacidade de armazenamento de dados visuais e computação dos mesmos que temos.
É como se fossemos editando banco de dados, que vamos acumulando ao longo da vida, de forma a que este esteja pronto para validar\interpretar algum novo estimulo visual, por exemplo uma imagem nova. É através do uso desse banco de dados que a nossa mente vai aplicar as regras semelhança, diferença, localização espacial, contorno, forma, cor, proximidade ou afastamento, relação espacial ou quantitativa de um ou vários objetos, geometrização de elementos, etc. Muitas vezes a perceção visual não é imediata, porque o nosso cérebro precisa de adaptar, sobrepor, incluir ou excluir regras para “emitir” um resultado.

Para além da capacidade de “desfolhar” o banco de imagens para encontrar relações, o nosso cérebro também consegue selecionar aquelas imagens que lhe “interessa” ver, isto é, há imagens que necessitamos mais trabalho para as ver, e outras que não a vemos mesmo. Segundo Donald D. Hoffman em “Visual Intellegence: How We Create What We See” existem formas “boas” por serem aquelas que o nosso cérebro facilmente interpreta.

“A perceção, contudo, é um processo psicossomático, fortemente dependente, por exemplo da relação entre o perceptor e o objeto percetível (…) o grau de familiaridade daquilo que um vê também influencia a sua perceção, (…). A perceção, de facto, depende de tantos factores que é impossível torna-la objetiva.”, Mieke Bal, “Looking In; The Art of Viewing” 2001.
Se a este mecanismo mental, juntarmos as transformações que a sociedade da imagem já provocou na nossa perceção, tudo se torna mais complexo.

Segundo estatísticas apresentadas por Andre Follett, no artigo online “18 Big Video Marketing Statistics: What They Mean for You”, as melhores estratégias para captar a atenção baseiam-se nas seguintes estatísticas (estes dados são relacionados publicidade, porém, na minha opinião, mostram a vontade\capacidade que neste momento temos para estar atentos). Ao fim de 10 segundos 20% da audiência muda de canal ou perde o interesse no que está a ver, 20 segundos depois são aproximadamente 30% os que não têm interesse em continuar a ver o anuncio, ao fim de 1 minuto já perdemos 45% da audiência, somente 40% da audiência chega aos 2 minutos. Assim as estratégias de marketing estipulam a regra de “ouro” de mais informação em menos tempo.

Em relação aos vídeos que são publicados nas redes sociais, a barreira do tempo é mais alta, e curiosamente (ou não) varia consoante a tecnologia do aparelho móvel utilizado, o IPhone só capta audiência até aos 2,4 minutos, um Android atinge os 3 minutos e o IPad os 5 minutos, julgo que estes dados poderão relacionar-se com o tanho do ecrã. Curiosamente no que diz respeito à partilha, o observador de um vídeo numa rede social, partilha-o 37% mais vezes se ele tiver menos de 15 segundos do que os vídeos entre os 30 e 60 segundos, os com mais de 60 segundos só são partilhados por 18% dos utilizadores.

No que diz respeito ao cinema, o assunto que me fez escrever este texto, começo pela na origem do cinema.

No cinema mudo, os filmes eram projetados com imagens de entre 16 a 24 “frames” por segundo, (imagens paradas, fotografias), para que as personagens não tivessem movimentos bruscos ou estranhos, repetia-se o mesmo “frame” até 3 vezes, “suavizando” a perceção do espectador, normalmente as cenas eram “cortadas” por imagens (varias repetições do mesmo “frame” com texto). Quando apareceu o cinema sonoro, apareceu também a necessidade de sincronizar a voz com o movimento da boca, para isso deixou-se de alterar os “frames”, generalizando-se a regra de 24 “frames” por segundo. Usou-se para isso, projetores de 2 ou 3 laminas, projetando cada imagem 2 ou 3 vezes, aumentando a frequência para 48 ou 72 Hertz (frequência das repetições, neste caso “frames”, por segundo).
Hoje em dia são, geralmente usados 48 a 60 “frames” por segundo.

Mas, aproximadamente, desde o advento do cinema sonoro (anos 30 do século XX), outro fator tem importância na produção de um filme, o tamanho dos “shots” (sequencia de imagens sem interrupção de planos). Nos filmes dos anos 30 o “shot” tinha em média 12 segundos, eram 12 segundos em que o espectador tinha para “assimilar” a imagem em movimento antes que viesse outra. Hoje em dia os “shots” têm em média 2,5 segundos.

O psicólogo americano William James escreveu em 1890 que não existe atenção voluntária que dure mais do que pouco segundo de cada vez, por isso a industria cinematográfica necessita estar sempre a “chamar” à atenção aos espetadores, caso contrário aconteceria o mesmo que acontece aos espectadores dos anúncios ou vídeos das redes sociais.

James Cutting fez uma análise a 150 filmes desde 1930 até 2010, e na sua publicação “Attention and the Evolution of Hollywood Film”, refere vários pontos interessantes para entender como o conhecimento dos mecanismos da Inteligência Visual, a capacidade de perceção do ser humano têm transformado a industria do cinema norte americano até à nossa década.

Para Cutting, o espectador ciclicamente desinteressa-se do que está a ver ao fim de poucos segundos, sendo a variação de estados entre o “interesse” e o “desinteresse” um padrão normal. Ao longo da história de Hollywood, foi-se aumentando o do numero de “shots” por filme, cada vez que o filme introduz um novo “shot” este serve de mecanismo para despertar o interesse do espectador. Hoje em dia, são poucos os filmes que não conseguimos ver sem um intervalo, este era um dos mecanismos que antigamente Hollywood usava para “acordar” o espectador. Um filme com muitos “shots” tornar-se-ia um filme que exige muito esforço aos espectadores. Em contrapartida um filme com poucos “shots” faz com que o espectador não se consiga concentrar, acabando por se fartar, (este é o momento em que parte da sala começa a trocar mensagens nas redes sociais). A mistura certa é o segredo para manter uma audiência atenta e sem esforço.

À quantidade de “shots” por filme temos que somar ainda o factor movimento. Cutting diz que “a nossa resposta ao movimento é psicológica”, as sequencias com mais ação num filme provocam o aumento da batida cardíaca, sendo possível até detetar alterações cutâneo (galvanic skin response - Wolfram Boucsein refere na sua obra “Electrodermal Activity” de 2012, que o aumento secreção de na pele é originado por emoções fortes, alterando a condutibilidade da pele).

Somando o tamanho dos “shots” ao movimento pode ser uma boa maneira de captar a atenção dos espectadores, mas, e isto foi parte do que aconteceu a mim, “os realizadores arriscam a irritar audiências se bombardeiam-nas com movimento frenético durante muito tempo” James Cutting.

Assim, a minha incapacidade de absorver e processar todos os “objetos” por “frame”, sendo o filme “Assassin’s Creed” muito pormenorizado, provocou que a minha mente tentasse interpretar o máximo possível, no mínimo tempo possível, porque causa do tamanho dos “shots” e sobre o efeito de irritabilidade induzido pelas frequentes e longas cenas de movimento.

Será a mente capaz de se adaptar a filmes com estas características? Se sim quais serão as consequências disso? Como se adaptaram o resto das artes visuais a esta necessidade de estimulo constante?

Na minha opinião a mente têm capacidade para “inventar” estímulos para que o espectador esteja atendo durante mais tempo, que se mantenha concentrado, que seja capaz de “absorver” toda, ou muita informação de uma vez num tempo razoável. Como exemplo tenho duas experiencias, também cinematográficas que me fazem acreditar que não é o mercado que dita a mente, “A Arca Russa” de Alexandr Sokurov (2002) e “Blade Runner 2049” de  Denis Villeneuve (2017).


ARNHEIM, Rudolf, Art and Visual Perception – a psychology of the creative eye, 1957, University of California Press, Berkeley, Los Angeles
HOFFMAN, Donald D., Visual Intellegence: How We Create What We See, 1998, W.W.Norton, Nova Iorque.
BAL, Mieke , “Looking In; The Art of Viewing” 2001, Amsterdão
FOLLETT, Andrew, “18 Big Video Marketing Statistics: What They Mean for You”, Marketing, 2017, http://www.videobrewery.com/blog/18-video-marketing-statistics/
CUTTING, James E.; DELONG, Jordan E; NOTHELFER, Christine E. “Attention and the Evolution of Hollywood Film”, 2010, Psychological Science, Berkeley
http://people.psych.cornell.edu/~jec7/pubs/cuttingetalpsychsci10.pdf