domingo, 24 de dezembro de 2017

Obediência e Adoração Cega

Com a evolução dos tempos, também o homem sentiu a necessidade de evoluir enquanto indivíduo pertencente a uma sociedade que exerce um papel fundamental na aquisição de cultura. No entanto, o conceito de cultura que, no seu sentido original, diz respeito a conhecimento, arte, crenças e costumes adquiridos pelo ser humano num determinado ambiente social, também ele se modificou.
Atualmente, é visto como uma manifestação de produção cultural que visa essencialmente obter lucro. Estamos, assim, perante a chamada indústria cultural cujo objetivo principal consiste na idealização de produtos que apelem ao consumo excessivo das massas, acessível a apenas algumas classes sociais de elevado estatuto.
É neste sentido que muitas das manifestações culturais são pensadas para o consumismo, criando a ilusão de que as grandes massas têm fácil acesso à cultura e à arte e, consequentemente, são mais cultas e mais interventivas socialmente. Assiste-se, deste modo, a uma deturpação cultural com vista à produção desenfreada de produtos consumíveis, fabricando a ilusão de que o ser humano é detentor de uma liberdade que, no fundo, foi imposta pela criação de valores económicos defendidos pelo progresso social.
Neste contexto, é inevitável associar indústria cultural a consumismo e a alienação, sendo que o comportamento de cada indivíduo é comandado pelo desejo arrebatador de possuir, de sobressair, compactuando inconscientemente com a obtenção de lucro fácil e desmedido que culmina num vazio ideológico e no desconhecimento de si próprio. O ser humano deixa de seguir as suas próprias vontades para seguir as vontades dos outros; deixa de lutar pelos seus objetivos pessoais para concretizar os objetivos alheios. Reduz-se a humanidade ao vazio, à individualização.
Hoje em dia, pode referir-se que a ganância pelo poder, pela riqueza é tão forte que as indústrias tornaram a cultura acessível a praticamente todas as classes sociais e é raro o endividamento para satisfazer futilidades e aparências. Contribuem fortemente para a divulgação cultural e manipulação das mentes os meios de comunicação social que paralisam os pensamentos e tão bem influenciam comportamentos consumistas e alienadores, contribuindo, desta forma, para uma espécie de democratização cultural. A televisão, a rádio, a imprensa rapidamente constataram a possibilidade de preparar as mentes consumistas para o lucro da indústria cultural. Se o homem pode prescindir de pensar, de tomar decisões e escolher o que subtilmente já foi escolhido por ele, por que motivo dar-se a esse trabalho? E está a sociedade a contribuir para a criação de “robôs” que vivem quase única e exclusivamente pela e para a imitação.
Adorno e Horkheimer, filósofos e sociólogos alemães, responsáveis pela criação do termo “indústria cultural” afirmam que “a indústria cultural impede a formação de indivíduos autónomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente.” Portanto, mecaniza-se a mente humana, simulam-se falsas personalidades, subvertem-se comportamentos, criam-se falsos valores e sensações, tudo em nome de um consumismo incessante que consome o corpo e a alma, porque estes se sentem insatisfeitos, querendo sempre mais.
Esta desfiguração da realidade e do homem, transportam-me para um filme dos anos oitenta, de John Carpenter, intitulado “They live” que, retrata, de forma bastante clara e notável, a manipulação da mente humana, influenciando o indivíduo a agir de acordo com vontades alheias, tendo os mass media ao seu serviço.
Basicamente, o filme dá a conhecer um homem que consegue, através de uns óculos especiais, ver seres alienígenas que vivem e convivem com os terrestres, adotando, de forma natural, os seus hábitos e comportamentos. Até aqui, nada de extraordinário, não fosse o facto de esses entes, disfarçados de humanos, se organizarem com o intuito de escravizar a humanidade, através de mensagens ocultas em anúncios publicitários, constituindo uma avalanche de conteúdos ditatoriais e autoritários.
Graças a esses óculos, a personagem consegue ler o que mais ninguém lê e, lembrando-se do Mito da Caverna, de Platão, tenta sobreviver e encontrar uma forma de salvar a humanidade da escravidão a que está submetida.
“They live” constitui uma crítica avassaladora aos vários meios de comunicação social que induzem o ser humano à obediência e à adoração cega dos discursos políticos, ao consumismo extremo, ao enriquecimento alucinado de indústrias que automaticamente concorrem para o crescimento da pobreza, do desemprego.
John Carpenter, realizador que aprecio bastante, consegue, na minha opinião, através de efeitos especiais básicos, criar uma dualidade emocional de melancolia e de felicidade, dependendo da condição social da pessoa/alien que vemos. Intensifica essas sensações, recorrendo a filmagens parcialmente projetadas a preto e branco, sem a possibilidade de distrair o espetador pela presença das cores, conduzindo-o para a verdadeira essência da mensagem que se pretende transmitir.
Conceitos como indústria cultural, consumismo, alienação facilmente se interligam com o ensinamento cinematográfico de “They live” que não pretende nada mais do que levar a sociedade a refletir sobre o seu comportamento e a ver o que não está à vista.