Roland Barthes escreve em 1957, em França, o texto “Bichon entre os pretos”, inserido no livro Mitologias. Neste texto é narrado um episódio comum da frivolidade europeia aquando de uma epifania exótica e uma necessidade artístico-burguesa de tropicalização da arte, da vida e da discussão intelectual decorrente da época, mas que também é tão real hoje em dia.
Barthes relata a história de um casal de professorxs burguesxs, que pretendem celebrar a sua conquista enquanto progenitorxs, desafiando a sua cria ao habitat dxs selvagens desconhecidxs, de pele e alma negra, quase prontxs a devorá-la, num sentido quase de fetichização. Aparentemente desprovidos de qualquer objeto de agressão, a pequena família burguesa vai até ao continente africano, provavelmente descrito de maneira bizarramente distorcida da realidade, com o intuito de o “desenhar”. Este cenário, que à primeira impressão é visto como uma aventura inocente de inspiração artística com um rótulo de bravura enjoativa ao seu redor, torna-se, aos olhos de Barthes, uma subversão de contextos e realidades intangíveis, através da intervenção dos instrumentos de desenho levados de França. O lápis e o pincel constituem ,assim, uma arma de apropriação (os registos gráficos são depois levados para a Europa como novidade e inspiração artística) e dominação (ao ensinarem os métodos europeus de pintura, estão a destabilizar e distanciar as raízes estruturais e culturais desse alhures de canibais ). “…essa viagem é nos aqui apresentada com o vocabulário da conquista: parte-se desarmado, sem dúvida, mas “com a paleta e o pincel na mão”, como se se tratasse de uma caça ou de uma expedição guerreira…”.
A grande protagonista deste relato é a criança, que na sua condição de bebé indefeso, puro e livre de malícia é usado como objeto de inserção e manipulação dos nativos canibais. É o “isco” perfeito de contemplação e dominação, contrariando a lógica antropofágica da comunidade descrita especificamente. O bebé de cachos dourados e pele de mármore, em vez de devorado por estes antropofágicos africanos, é ele quem “devora”, que manipula pela contemplação da sua figura e que, assim, torna-se uma imagem de adoração, colocada num “altar mitológico”. “Bichon é um bravo francezinho, que amansa e submete sem violência os selvagens…”
A criança angelicamente europeia levada pelos seus progenitorxs, que iam com o intuito de pintar, desenhar e retirar inspiração de um desconhecido grotesco mas fetichizante e sedutor ao mesmo tempo, é, a meu ver, personificada numa figura de dominação, uma espécie de colonização com uma manjedoura e lençol dourado segurando lápis de crayon nas mãos. Uma prática de colonização “leve” e “fresca”, mas que não o deixa de ser pelo seu carácter primaveril e familiar. Uma prática de violência portanto, mascarada num mundo de fantasia.
Esta análise destapa o véu colonial que esta história, aparentemente pedagógica e familiar, nos transmite; serve de metáfora a distintas práticas de colonização “subtil” , tais como certas organizações e projetos de voluntariado em países de “terceiro mundo” e as missões de cristianização e evangelização nesses mesmo países.
Em primeiro lugar, chamo a atenção para um filtro mais atento e crítico perante as “missões” de voluntariado, que à primeira vista nos iludem pela emoção, pela solidariedade e por um falso moralismo. Determinadas organizações, estatais, privadas ou religiosas, em muitos casos, assumem uma posição de alter-ego heóirco enviando pessoas mal preparadas e não conscientizadas sobre o lugar para onde vão “ajudar”. O ocidental chega num lugar, que é um outro mundo, e não o entende como tal, assumindo uma postura de espelho e cópia do “primeiro mundo” de onde veio. Aqui gera-se inicialmente um conflito entre culturas, onde o voluntário(a) realiza práticas de dominação e imposição da sua cultura como certa, absoluta e superior, realizando a sua missão de progresso e evolução dos povos carenciados, não-desenvolvidos e inferiores. Tudo isto de forma súbtil, “humanitária”, e solidária, quando a sua “missão” o(a) ajuda mais a ele prórpio(a) e à sua consciência do que realmente ao povo em questão.
Aponto também um exemplo mais específico, que é o grande problema humanitário das missões evangélicas no Uganda. Estas grandes organizações evangélicas provenientes dos Estados Unidos, desenvolverem uma estratégia de propagação da sua fé pelo mundo inteiro, que é o seu principal objetivo, focando a sua atenção principalmente no continente africano e sul e centro americano. Estas missões de fanatismo religioso dominaram e destabilizaram toda a sociedade ugandesa, pela massificação e total controle das casas evangélicas que se espalharam pelo país todo. Agregado ao fanatismo foi também levado o moralismo sexual e de género da doutrina evangélica, que gerou uma massiva campanha anti-homossexualidade e, com isso, uma grande guerra civil. Esta lavagem cerebral do moralismo sexual e anti LGBT foi crescendo como um enorme cancro que matou muitos cidadãxs, opositorxs e ativistas principalmente na capital, Kampala, que reagiram pela grande campanha da frente evangélica que proclamava a aprovação legislativa da punição da homossexualidade pela pena de morte.
Em 2013, o norte-americano Roger Ross Williams, realizou um documentário que retrata todo este cenário, desde a idealização deste projeto evangelo-colonizador pelos missionários da Internacional House of Prayer, e do seu ministro principal Lou Engle nos Estados Unidos ( divulgação do projeto, recrutamento dos voluntários, financiamentos privados) até à implementação na capital e em missões que abrangessem todas as aldeias do Uganda.
Este documentário assume uma posição de ativismo e resistência perante este movimento que continua sendo espalhado no continente africano, a passo largo, dando a conhecer a uma escala mundial este grande problema humanitário.
Bichon poderia ser um bebé que nasceu num seio evangélico, e que chegando num alhures de antropofágicos LGBT, os curava com a sua bíblia, livrando-os do diabo que dança nos seus corpos.

