Nunca como agora
o Homem viveu um contexto que lhe tenha trazido tão elevados níveis de conforto,
de segurança e de saúde. Os meios de diagnóstico e tratamento de doenças atingiram
um nível de eficácia e sofisticação que aumentaram extraordinariamente as expetativas de longevidade. Os
hospitais e unidades de saúde direcionam-se cada vez mais para as chamadas
doenças do futuro. Estas são as enfermidades das populações envelhecidas: os tumores,
as doenças degenerativas e as demências. Isto porque apesar do exponencial
crescimento demográfico mundial é um facto que, de acordo com as estatísticas
globais, a população mundial está a envelhecer a um ritmo acelerado. Este
envelhecimento tem maior expressão nos países economicamente desenvolvidos onde
se estima que aqueles que nasceram após o ano 2000 poderão viver em média acima
dos 100 anos.
Com esta
gigantesca evolução tecnológica e cultural a humanidade afastou-se cada vez
mais da sua substância orgânica, e atirou para trás das paredes das
instituições os momentos da doença, da velhice e da morte. Também o nascimento
foi condicionado e remetido aos quartos descaracterizados das maternidades onde
o primeiro choro e o respirar dos recém-nascidos são entregues a profissionais anónimos.
Perde-se assim mais um dos confrontos com a nossa condição animal. Apesar da endeusação
da juventude também esta acaba sistematizada em rotinas que a atiram para fora do
quotidiano. Momentos onde as crianças podem ou não ser bem-vindas, de acordo
com as ocasiões ou os ambientes sociais.
Estamos hoje, permanentemente
e de forma imediata, ligados à maior quantidade de conhecimento a que alguma
vez a espécie humana teve acesso. Não obstante este gigante fluxo de informação
que temos ao dispor, tanto em quantidade como em velocidade, a maior parte de
nós escolhe o entretenimento e a distração preferindo viver num estado de dormência,
embalados pelas escolhas dos meios de comunicação, e embriagados pelas necessidades
que nos são sugeridas pelos especialistas em marketing e publicidade. Vivendo ainda
assim na crença de que somos providos de livre arbítrio.
As espécies
evoluem promovendo atributos que as favorecem, e perdendo aqueles que lhes são dispensáveis.
E assim, tal como um dia alguns primatas acabaram por renunciar a cauda, também
o Homem começa a perder a habilidade de sentir. Está a perder a ligação à sua
condição física. O ser cultural distancia-se cada vez mais do ser biológico. Tudo
ao seu redor se vai artificializando. O alimento industrializa-se e passa a
produto alimentar, processado, rico não em vitaminas e sais minerais mas em intensificadores
de sabor e conservantes. O vestuário passa a guarda-roupa e a objeto de moda
substituível a cada estação. Tudo é produto fabricado. As pulsões primordiais e
elementares dão lugar a uma desordem de emoções num mundo asséptico e estéril, pobre
em sentimentos e afetos. Fica um sentimento de perda pronto a ser substituído
por quaisquer outras formas de sentir.
Num tempo em que
as necessidades básicas de sobrevivência estão na sua maior parte saciadas, o
consumo exagerado e inconsciente assenta paradoxalmente na procura de
compensações individuais, egocêntricas, fruto da carência de valores e amplificadas
pelos interesses das grandes marcas e companhias. Necessidades de compensação
de um vazio interior deixado pelo facto de já não precisarmos verdadeiramente de
nada.
Assim adquire-se
tudo aquilo que a pressão da sociedade nos leva a acreditar que precisamos.
Tudo aquilo que consideramos necessário para alcançar a aceitação do grupo. Cultivam-se
códigos exteriores, ao invés de se melhorarem os aspetos interiores. Quando as
pessoas se habituam a determinados luxos tomam-nos como certos e essenciais e
já não conseguem viver sem eles. Esses passam a necessidades e consequentemente
a novas obrigações. E grande parte desses produtos servem apenas a procura de uma
superioridade social perante indivíduos que muitas vezes se abominam. São
resposta a pulsões primitivas de competitividade e de fúria. Pouco ou nada
construtivas.
No final acabamos
por ter que trabalhar para ganhar dinheiro para obter as condições necessárias para
que possamos trabalhar. Trabalhamos para termos uma casa perto do emprego.
Trabalhamos para poder ter um carro para ir trabalhar. Trabalhamos para comprarmos
roupas para ir trabalhar. Trabalhamos para adquirir objetos que impressionem e
mostrem como somos bem-sucedidos a trabalhar. É esta a experiência da condição
humana.
Tempo é dinheiro.
Cada vez que compramos algo com dinheiro estamos a pagar com o tempo de vida que
gastámos para o ganhar. Sendo que o tempo de vida é a única coisa de que dispomos
verdadeiramente em quantidade limitada. Seria talvez preferível
consumir esse tempo a identificar objetivos que transcendessem as necessidades
homeostáticas imediatas, inspirando e elevando as nossas mentes. Pensando no
nosso ser futuro, individual e de grupo. Talvez devêssemos conduzir todo este potencial
tecnológico e humano que temos ao dispor nos nossos dias para construir uma sociedade
verdadeiramente justa, ética e emocionalmente competente.