sábado, 23 de dezembro de 2017

Citroen DS, Deuses e a imortalidade

Em O Novo Citroen, Roland Barthes, escreve acerca do papel do automóvel na sociedade moderna, mais concretamente do Citroen DS, novo modelo da marca Citroen (ou “Déesse”“deusa” em francês, como chama o autor, em tom de brincadeira). É particularmente interessante esta comparação que o autor faz entre o automóvel e o divino, que se faz sentir na primeira metade do texto.
 “Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exato das grandes catedrais góticas: quero dizer, uma criação que faz época, concebida com paixão por artistas desconhecidos, consumida na sua imagem, senão no seu uso, por um povo inteiro, que através dela se apropria de um objeto perfeitamente mágico.”
 A religião tem um papel imprescindível na sociedade europeia do séc. XVII e está presente em toda a forma de arte e pensamento da época. A arquitetura gótica é um dos, se não o maior representante desta idolatração. Estas estruturas de proporções gigantescas e detalhes intricados, serviam como símbolo do ser humano elevado ao estatuto de deus, impunham no público um estado de transe, “um silêncio que pertence à ordem do maravilhoso”.
O mesmo se passa com o novo modelo da Citroen; os seus contornos sobre-humanos, uma obra de arte sem autor, tudo isto contribui para o desprendimento da peça perante a humanidade. De tão perfeito é como se “cai[-se] manifestamente do céu”.
  Já René Descartes associava no séc. XVII, o conceito de perfeição com a ideia de Deus. Em Discurso do Método explica que a ideia de perfeição não está de forma alguma associada ao ser humano, nem a este mundo diretamente, por este ser inevitavelmente imperfeito; mas o próprio conceito de imperfeição pressupõe a ideia de perfeito.
Sendo assim, só nos resta afirmar a existência de deus como um ser universal e perfeito, que nos impôs, lá está, o conceito de perfeição. A ideia de perfeito serve então, tal como a ideia de deus, como sinónimo de algo que sobrevive ao tempo, que é imortal.
 No entanto, o fascínio da humanidade pela imortalidade já durava há muito tempo, sendo remoto às primeiras civilizações e crescendo em paralelo com a cultura religiosa, evoluindo conforme a época e a sociedade em que se inserem até aquilo que conhecemos nos dias de hoje.
E é esta preocupação com a morte que os liga tão fortemente a este tipo de “objetos”. A religião nasce desta forte necessidade do Homem de se tornar imortal.
A morte pressupõe o tédio, um infinito desassossego pintado de preto; pressupõem também que a existência humana é absurda e inútil. A religião resolve todos estes problemas, propondo um mundo paralelo a este, onde a existência do consciente é possível depois da morte. Assenta o universo mortal numa espécie de “purgatório” onde a devoção do individuo é testada através de uma série de rituais ou sacrifícios a uma divindade, que, por sua vez, lhe garantirá um “cantinho no céu”.
 Houve, no entanto, uma descrença crescente na religião por parte da população geral a partir do séc. XX, que muito provavelmente nunca mais vai ser recuperada. Isto deve-se em parte à evolução exponencial da medicina e da ciência. A esperança de vida aumentou drasticamente. As primeiras pessoas a viver mais de 100 anos nasceram em finais do séc.XIX. Nunca estivemos tão perto da vida eterna como agora; e esta não está nas mãos de uma entidade hipotética qualquer, está aqui neste universo e está nas nossas mãos. O Homem torna-se o seu próprio deus e toma as rédeas da sua própria existência a 100%, controlando-a a seu bel prazer.
 O novo modelo da Citroen vem assim atacar a suscetibilidade do publico, que é levado a um futuro utópico em que o Homem escapa das garras da religião e das suas imposições para se sentar, ele próprio, no trono dos deuses.