segunda-feira, 28 de maio de 2018

Uncursed. Portas que não abrem.


    Uncursed é uma instalação de portas que dão para lado nenhum, dispostas de forma mais surrealista que aleatória. Esta obra de Yoko Ono parte do experimentalismo da sua intervenção premiada na trienal de Hiroshima. Nascida em 2011, ainda perturba. Nove portas impossíveis de abrir, mas que a artista declarou terem de ser transpostas. Nove portas dispostas de forma aparentemente caótica, algumas caídas ou dando passagem para um mundo subterrâneo. Yoko Ono inspira-se na maldição do Japão, que em menos de um século sofre dois desastres nucleares - em Hiroshima e em Fukushima. 

   As portas, jura a artista, representam a travessia que os indivíduos (ou o país) têm que fazer na peregrinação para expurgar os mil monstros da caixa de pandora que se abriu no Japão, no século passado. Obstáculos que nos impedem de avançar, os cabos Bojadores que temos que ultrapassar para exorcisarmos as pragas que nos perseguem.






   Jura a artista. A mesma que a cultura condenara à sombra de John Lennon, que a descreve como "a artista desconhecida mais famosa do mundo" ("the world’s most famous unknown artist") tentando, sem sucesso, que os milhões que a viam olhassem para ela.

    A cultura do século passado fez com Yoko Ono o que um ilusionista, na sua câmara-escura, faz com a sua magia: cega-nos com truques que escondem os verdadeiros truques. Vista e invisível, reduzida ao título de "mulher do John Lennon" perante os olhos do público consumista, Yoko Ono foi de forma automática posta num pódio, iluminada pelos holofotes que apontavam para Lennon e a deixaram na sombra. Não se trata da simples ilusão dos sentidos tão bem descrita na Alegoria da Caverna, mas da ilusão da valoração imposta pela ideologia cultural, que busca sóis que encandeiam e não deixam ver estrelas. Este apagão é tão óbvio que Yoko Ono até surge como um capítulo no índice da página Wikipédia de John Lennon.

   “Uncursed"? Infelizmente, talvez só após a morte do músico.

  Yoko Ono leva décadas a ser vista e aceite como a personalidade sui generis que é, e a começar a ser reconhecida pela sua arte. Em 2011, quando Hiroshima e Nova York se rendem à sua obra e a premeiam, Yoko Ono presenteia-nos com o labirinto de portas fechadas que ela própria teve de transpôr.

    É o exemplo acabado da filosofia da caixa-preta de Vilém Flusser, uma vez que Ono recusa-se a utilizar as portas para o seu propósito comercial. São portas que fisicamente não nos levam a lado nenhum, que não abrem nem fecham, que não separam dois espaços físicos distintos. É o não usar os elementos como funcionário servil, mas sim como artista, transformando os elementos num objeto artístico, antitético do previsto.


   

     Yoko Ono escreve na parede da sua instalação “I am uncursed” - “já não estou amaldiçoada”, que remete para a purificação do Japão, mas mais parece uma libertação dela própria. 
  Ela que deixa, também, de estar amaldiçoada pela cultura, que anteriormente a deixava na sombra de John Lennon.