domingo, 27 de maio de 2018

A aura e a Independência da Arte



A arte como disciplina de estudo tem uma definição muito inconstante, dependendo de quem, onde e quando está a ser definida. No entanto, seguindo a ideia geral, a Arte pode ser compreendida como uma atividade humana relacionada com demonstrações estéticas ou comunicativas. Tem diversas maneiras de se expressar, nomeadamente, o desenho, a escultura, a pintura, a escrita, a música, a arquitetura a dança, o teatro e o cinema. Cada arte tem o seu utensilio de expressão assim como a sua certa ciência por de trás, no entanto todas tinham algo em comum, a sua aura. Até tempos recentes, a arte tinha, segundo uma aura que se definia como uma “figura singular, composta de elementos espaciais e corporais.” Seguindo o ensaio “ A obra de arte na era da sua reprodutibilidade Técnica ” de Walter Benjamin, estava relacionada com três principais termos: a Unicidade, a Autenticidade, a Originalidade e a tradição de uma obra, o por ele chamado “Aqui e Agora” – a essência; a presença física e local de origem. A unicidade defende a existência única de uma determinada peça, sem haver qualquer reprodução da mesma. Estes aspetos transformam-se em características da arte dependendo do seu contexto social e cultural principalmente.
Este termo está muito relacionado à ideia religiosa de “Aura”. A Obra tem um caracter de objeto a ser cultuado, admirado.
A aura era a principal definidora do que é realmente uma obra de arte. Única, sem outra igual. No entanto isto mudou com a invenção da Fotografia no século XIX, que aproximou comunidades de todo o mundo através da captação de imagens nunca antes vistas por uma determinada sociedade num determinado espaço. Com o aumento de imagens a serem partilhadas em revistas, deu-se o aumento do consumismo por parte das sociedades mais evoluídas, alimentando o capitalismo presente nas mesmas. Com esta nova manifestação artística, a aura, também chamado de valor culto, foi substituída pelo valor de exposição.

Mas o valor culto não se entrega sem oferecer resistência. Sua última trincheira é o rosto humano.” (BENJAMIN WALTER, 1936, Página 174 d’ “ A obra de arte na era da sua reprodutibilidade Técnica”)


Figura 1: Exemplo Fotográfico -;Ruas de Paris; 1900.
Autor: Atget

Graças à Fotografia originou-se o cinema, que roubou completamente a popularidade das outras artes, como a pintura. Assim, o valor de exposição alcança o seu apogeu. Benjamin compara a sétima arte ao Teatro, defendendo que o cinema havia perdido a aura. Isto deve-se ao uso da camara de filmagem, que não era necessária no teatro, que conectava o ator diretamente com o espetador. O corpo humano nesta arte preformativa é utilizado como um objeto, um acessório usado pela máquina que grava a sequência rápida de fotografias. O teatro é natural e independente.
O cinema deu ao espetador uma nova forma de ver o mundo. Os espetadores do cinema deixarem de ser um “espetador calmo”, e passaram a tomar ações, libertando a arte do fascismo das massas. Apesar de terem sido estas ultimas que impulsionaram o desenvolvimento da reprodução em serie.
Apesar desta valorização das artes pré-fotografia, a perda de Aura não é necessariamente um aspeto negativo da evolução da tecnológica. O Valor Culto não passa de uma intrusão por parte de movimentos como a Religião, que controlou grande parte da arte que até hoje sobreviveu ao passar dos anos. Como é exemplo o “Juízo Final” de Michelangelo, que incide no tema de temor a Deus. Este fresco do ano de 1541 ainda hoje se encontra na Capela Sistina, cobrindo a parede do altar. Diz-se que graças à encomenda do próprio Papa Clemente VII, finalizada já com o Papa Paulo III, esta pintura provocou um grave medo de Deus, devido às representações de diversos castigos e possibilidades que cada crente poderia sofrer, como é exemplo o autorretrato do pintor na pele esfolada na mão de São Bartolomeu.

(…) Sobre a nuvem imediatamente abaixo de Cristo vemos o apóstolo São Bartolomeu, que segura uma pele humana esfolada, alusiva ao seu martírio. Todavia, o rosto dessa pele não é o do santo, mas sim o de Miguel Ângelo.

Livro: “A Nova História de Arte de Janson: A tradição ocidental”, p 614, l.18-23

Para além de ser uma forte influência da própria crença, já que São Bartolomeu foi esfolado vivo, simboliza o medo do artista em relação ao seu futuro como crente.

(…) o artista considerou-se indigno da ressurreição em carne e osso, um tema recorrente na imagem.

Livro: “A Nova História de Arte de Janson: A tradição ocidental”, p 614, l.25 e 26

Gerou muita controvérsia que levou a discussões vividas entre os críticos da contra-Reforma Católica e os apreciadores de Michelangelo e do seu maneirismo.



Figura 2 – “Juízo Final”; Capela Sistina; Roma
Ano: 1541
Autor: Michelangelo
Descrição: Representação Bíblica (Mateus 24:29-31)


Figura 3 – Detalhe do “Juízo Final”; Capela Sistina; Roma
Ano: 1541
Autor: Michelangelo
Descrição: São Bartolomeu, com a faca do seu esfolamento na mão esquerda e a pele solta do próprio Michelangelo na mão direita.

O controlo do que era retratado nas artes deveu-se à necessidade de poder por parte das sociedades de maior influência, como é exemplo um Papa ou um Rei. Como é o caso do Papa Paulo III que pediu a Miguel Ângelo que pintasse a parede do altar, na qual estavam as encomendas do Papa Sisto IV, e obras anteriores da autoria do próprio pintor.

Foi graças à fotografia e ao cinema que a arte ganhou a autonomia que nunca teve, aparecendo novas obras nunca antes imaginadas. Apesar de ter uma consequência positiva, a evolução tecnológica também desencadeou uma extrema mercantilização dos produtos, que foi alimentando o capitalismo até aos dias de hoje. Qualquer foto, vídeo ou texto pode ser partilhado com o mundo inteiro – A ideia de Globalização. A unificação das diversas sociedades pelo mundo espalhadas. Esta disponibilidade de partilha leva a uma maior competição independentemente da área que se frequenta, aumentando também a necessidade de originalidade, algo que a Aura defendia.

Perdeu-se a Aura pela independência, mas continuamos a precisar de algo que nos torne únicos. É importante frisar que a essência de ser original é algo muito importante na arte, e esta estátua abaixo exemplificada não o tem. Vai ser o facto de ser a primeira, a original, que torna a arte, arte.

Figura 4 – Réplica de “Laocoonte”
Local: Corredor do piso Principal; Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa;
Descrição: A replicação da obra “Laocoonte” deve-se possivelmente à necessidade de disponibilizá-la para os alunos de artes. Mas obviamente que se deveu também à crescente mercantilização da arte.