domingo, 27 de maio de 2018

Essência da Referência


               Com o surgimento das novas tecnologias encontrar referências que ajudem a criação artística nunca foi tão fácil. Desenhar uma paisagem que reúna elementos de múltiplas referências é possível apenas com o poder de uma simples busca em casa. Contrariamente ao que acontecia há 4 séculos atrás, já não precisamos de presenciar o objeto de referência ou percecioná-lo através de um estudo dele feito para o usar em prol da execução artística. Mas será que esta facilidade contribui ou prejudica o resultado e a mensagem intrínseca da obra?
               A perceção de um objeto é um fenómeno cognitivo que ocorre fora da esfera do sujeito. Durante a apreensão, o sujeito sai da sua esfera, entra na esfera do objeto e volta com uma imagem dele. Esta imagem não é o “todo” do objeto, é a parte absorvida pelo sujeito que depende do ambiente em que foi apreendido, da “faceta” que foi apreendida. Imaginemos que estamos numa conferência, sentados a meio de um auditório a ouvir dado orador. Do meio da sala, vemos esse orador numa escala menor. Provavelmente, falha-nos a perceção de algumas rugas na testa e traços faciais já nos chegam meios desfocados. Esta falta de detalhe desencadeia em nós a necessidade de “preencher lacunas”, ou seja, de desenhar como seria esta pessoa como se à “escala real”. Todos os estímulos externos contribui, como um todo, para a idealização do que estamos a apreender: se o orador tiver uma voz mais suave, temos tendência a imaginar traços mais suaves; um discurso mais intelectual leva-nos a preencher os vazios com traços que correspondam ao ideal de pessoa idónea; mudamos para um cenário que o sujeito é um ator no papel de um príncipe e aí as lacunas preenchem-se de acordo com o nosso ideal de príncipe, que pode denegrir o sujeito se esse ideal for bom ou mau. Como consequência, quando o vemos à escala real, por vezes, percecionamos uma pessoa completamente diferente, uma que não corresponde àquilo que imaginámos quando preenchemos as tais lacunas.
               Por uma questão prática de facilidade é muito comum vermos artistas, na sua maioria da geração mais nova, a desenhar a partir de fotografias. Já ninguém precisa de ir aos Himalaias para ter um pequeno vislumbre de como parece. No entanto, se mesmo com a presença do objeto é necessária alguma observação de ângulos distintos para perceber alguns traços que não são tão claros do ponto vista, chamar-lhe-emos, inicial, não terá essa forma de referência que é a fotografia um impacto prejudicial no desenho do objeto? A partir da fotografia, a apreensão do objeto sofre limitações drásticas, não só porque estamos cingidos a um único ângulo, mas também porque todos as restantes sensações são inexistentes. Sendo assim, temos uma experiência sensível a tender cada vez mais para o incompleto. Nós, eventualmente, teremos a sensação de que já vimos e sentimos tudo o que o objeto tem para dar só de olhar para a fotografia, mas trata-se apenas da nossa capacidade inconsciente de preencher o incompleto com um cenário ideal imaginário criado pela nossa capacidade intelectual, adaptativa e subjetiva de ver para além daquilo que é concreto. E, de facto, muitas vezes acontece termos uma experiência sensível completamente diferente da fotografia, quando visitamos o local.
               Agora se invertermos os papéis a história muda substancialmente. Se visitarmos dada paisagem, contemplada e estudada de vários ângulos presencialmente, e for tirada uma foto para recordação, quando se for tirar partido dessa fotografia como referência, apesar de não ser a completa experiência sensível, o sujeito já transfere essa mesma experiência para a fotografia que tem diante de si, e aí temos uma aproximação maior entre as referências. A diferença na perceção de ambas já não é tão drástica.
               Quando falamos em técnica, ou seja, estudar o objeto, procurar uma apreensão que tenda para a infinidade do seu todo garantido uma maior fidelidade entre ele e a representação, não resulta trabalhar a partir de uma referência fotográfica. Mas na criação artística, posterior ao estudo de todos os elementos que possivelmente a vão compor, ela já constitui um bom instrumento de fácil acesso, que permite a representação de algo ideal para o artista e que só é tangível a partir da arte.