sábado, 26 de maio de 2018

Os papéis de uma casa


A exposição temporária No Place Like Home, que ainda ocorre no Museu Coleção Berardo, traz cômodos e objetos que propõem uma reflexão sobre a nossa familiaridade com o ambiente da casa, de modo a nos confrontar com a subjetividade das coisas e dos espaços, a partir de uma nova percepção sobre o lar e as coisas. A partir das ideias de Duchamp e do movimento Dada, a transição funcional do objeto doméstico para obra de arte, faz-lhe instrumento de investigação para o artista, que o permite analisar e criticar, neste contexto, os papéis de gênero no trabalho doméstico, sobre o espaço central na formação da família e a identidade cultural.
Segundo Jean Baudrillard, “Os móveis se contemplam, se oprimem, se enredam em uma unidade que é menos espacial do que moral [...] Neste espaço, cada móvel, cada cômodo por sua vez interioriza sua função e reveste-lhe a dignidade simbólica: completando a casa inteira a integração das relações pessoais no grupo semi-fechado da família”. Com essa ideia e com as discussões de Simone Beauvoir, no seu livro O Segundo Sexo, sobre o desenvolvimento da mulher, desde seu nascimento até a vida adulta, podemos caracterizar as diferenças de gênero ao interior de uma casa, temáticas essas que foram trazidas na exposição citada.
Beauvoir acredita na ideia de castração como privação do desenvolver da liberdade, ímpetos naturais que todo criança tem, a partir da ideia de uma segunda desmama, momento que, as crianças um pouco mais velhas, os carinhos dos pais passam a ser mais as meninas que aos meninos, já que esperam que estes sejam “os homenzinhos” da casa, de modo a compensar esta perda afetiva dos meninos, estes encarnam em seu sexo sua soberania orgulhosa, reconhecendo assim seu alter ego. Já para as meninas, para desempenhar seu alter ego, põe-lhe uma boneca, algo passivo de corpo inteiro, ensinam-lhe fazer-se objeto, renunciando sua autonomia e liberdade.
A partir dessa diferença de desempenho de alter egos, cada um terá uma relação diferente com a família e com o ambiente da casa, como as mães almejam integrar as filhas no mundo feminino, e estas aceitam entrar nesta sociedade das matronas para construírem sua superioridade, logo percebem que seu mundo é passivo e que apenas os homens podem se aventurar pelo mundo, que são heróis e autônomos. Isso pode ser transfigurado a casa facilmente, para as mulheres cabem a boneca, ser passivo que precisa de cuidados, tudo que a estrutura interna de uma casa precisa para se manter. Ao menino, lhe permite aventurar-se, desenvolver sua virilidade, assim talvez a garagem, ambiente onde se guardam as ferramentas, que tem conotação ao nascimento de ideias, e pode ainda ser visto mais como um anexo à casa que um cômodo da mesma; assim não lhe cabe a casa, lhe cabe o mundo.
Assim, a exposição traz obras que nos convidam a encontrar as relações simbólicas dos objetos e espaços da casa para além de sua funcionalidade, e pelo ponto de vista da arte, podemos alterar esta relação, por meio da transformação de perspectiva ao que é familiar. Como, por exemplo, a vídeo-performance Semiotics of the Kitchen de Martha Rosler na cozinha desta casa desfigurada, onde apresenta como usar instrumentos usuais da cozinha de maneira imprevista e não delicada, diferente do esperado como uma mulher aja, de certa forma, dessexualiza esta imagem da dona de casa. Agora na casa de banho, a artista Rachel Lachowicz com a obra Untitled (Lipstick Urinals), traz 3 urinóis pintados a vermelho, que corroboram a ideia de passividade e até submissão aos homens.