quarta-feira, 30 de maio de 2018

PROCESSOS DE CONTROLE E ALIENAÇÃO DAS MASSAS


O enredo do livro Road side picnic, de Arcady e Boris Strugatsky, desenrola-se num dos seis locais na Terra onde teriam ocorrido visitas extraterrestres. Estranhamente essas visitas não foram presenciadas por ninguém das comunidades vizinhas, nem sequer os meios em que chegaram ou partiram os alienígenas. No entanto, estes seres deixaram vestígios nesses locais, conhecidos como Zonas de Visitação. Essas Zonas foram prontamente isoladas das populações locais; continham artefactos desconhecidos e com propriedades inexplicáveis que apresentavam fenómenos estranhos e perigosos, quase sobrenaturais, não compreendidos pelos humanos. Nelas, a realidade não era nada do que parecia.
Os irmãos Strugatsky, escritores soviéticos de ficção científica, inspiraram movimentos de dissidência nos anos 1970 e 80, no seu país. Road side picnic, 1971, publicado na União Soviética em 1977 (adaptado ao cinema em 1979 por Andrei Tarkovsky com o título Stalker), foi uma das obras mais importantes e influente nesses movimentos. À época, a ficção por eles criada mimetizava a realidade da sociedade soviética, que vivia uma verdade diferente da oficialmente difundida.

A hipernormalização da SOCIEDADE SOVIÉTICA
Era claro nos anos de 1980 que o sonho original da União Soviética, de criar um glorioso mundo novo no qual as sociedades e as próprias pessoas seriam transformadas, tornando-se novos e melhores seres humanos, tinha falhado. O país tinha-se tornado numa sociedade na qual ninguém acreditava em nada ou sequer tinha alguma visão de futuro. No projecto inicial desta sociedade socialista, os líderes soviéticos acreditavam ser possível planear e controlar tudo, mas por esta altura já tinham percebido que isso era impossível. O plano saiu de controle e os tecnocratas optaram por não revelar esta evidência, preferindo fingir que tudo estava a correr bem com o plano inicial. Surgia assim uma versão falsa da realidade.
Anos mais tarde, em 2006, o antropólogo russo Alexei Yurchak criou, no seu livro Everything was forever, until it was no more: the last Soviet generation, um termo para este estado da sociedade: hipernormalização. Ele reflecte a normalidade criada para além da realidade, uma versão falsa da vida que era a realidade oficial imposta. Esta verdade era uma alternativa simplificada e positiva. A população sabia que o que os seus líderes diziam não era real, porque eles viam o colapso económico do país a acontecer, mas todos tinham que fingir e agir como se fosse porque ninguém conseguia imaginar nenhuma alternativa ao sistema vigente.

Perception Management como dispositivo de gestão DE emoções
Em Dezembro de 1982, Israel enviou um exército massivo para cercar os campos de refugiados Palestinianos no Líbano, com a finalidade de destruir a Organização de Libertação da Palestina (OLP). Dois meses depois, milhares de refugiados palestinianos foram massacrados nos campos de Sabra e de Chatilla, numa acção militar israelita e de uma facção cristã Libanesa que chocou o mundo. Perante o horror e o caos crescente na região o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, anunciou que os Marines iriam para Beirute liderar uma força de manutenção de paz.
Apesar de Reagan insistir que as tropas eram neutrais, o presidente Hafez al-Assad da Síria, pai do actual presidente, acreditava existir outras motivações. Ele viu as tropas no território como parte de uma conspiração antiga, e crescente, dos Estados Unidos e de Israel para dividir o Médio Oriente em facções, destruindo assim o poder Árabe. Por todos estes motivos, Assad decidiu tirar os americanos do Médio Oriente. Para essa campanha ele estabeleceu uma aliança com a nova força revolucionaria do Irão do Aiatolá Khomeini. Desta aliança, Assad adoptou uma nova arma recém criada pelos iranianos e utilizada quando o país fora atacado pelo Iraque, conhecida como a “bomba atómica dos pobres”, o bombista suicida.
Em Outubro de 1983, dois bombistas suicidas fizeram-se explodir em camiões contra acampamentos de Marines em Beirute, matando 241 norte-americanos. Os membros pertenciam a um novo grupo que nunca ninguém tinha ouvido falar, o Hezbollah. Apesar de grande parte dos membros do Hezbollah fossem iranianos, o grupo era controlado pela Síria e pelos seus serviços de inteligência. Quatro meses após esta ocorrência, todas as tropas norte-americanas foram retiradas de Beirute. Esta foi uma enorme conquista para o presidente Assad.
Em face desta humilhante derrota no Líbano, o governo do presidente Reagan necessitava, em plena Guerra Fria, tornar-se o guardião da luta do bem contra o mal, mantendo a imagem de defensor dos valores do Ocidente, da Liberdade e da Democracia. Para que isto acontecesse era necessário criar um vilão. Um inimigo imaginário, um falso mestre terrorista, que pudesse ser o objecto de foco e, dessa forma, desviar a atenção da realidade complexa das politicas no Médio Oriente. O candidato ideal a vilão era o Coronel Muammar al-Gaddafi, presidente da Líbia. Em meados dos anos de 1980, Gaddafi era uma figura isolada, sem amigos ou influência global.
Em Dezembro de 1985, dois ataques terroristas simultâneos atingiram os aeroportos de Viena e de Roma, matando 19 pessoas incluindo cinco norte-americanos. Quase de imediato o presidente Ronald Reagan anuncia que o Coronel Gaddafi era o responsável pelos ataques. Porém os serviços de segurança europeus, que investigaram os ataques, estavam convencidos que a Líbia não estava envolvida mas sim a Síria. Apesar de não haver evidências do envolvimento de Gaddafi nos ataques, ele não fez questão de se demarcar deles, tornando o caso mais complexo, transformando-o numa crise global.
Este foi o início de uma longa campanha que criou uma poderosa imagem, para o Ocidente, de Gaddafi como um vilão global que liderava um “Estado Criminoso”. O Coronel usou esta publicidade, dada pelos americanos, de forma dramática, construindo para si uma imagem de temido e poderoso líder revolucionário internacional, que tinha por missão libertar os povos oprimidos. Os Estados Unidos e Gaddafi ficavam desta forma presos num ciclo de reforço mútuo e assim foram construindo um mundo ficcional.
Um novo ataque terrorista ocorrido numa discoteca em Berlim Ocidental matou um soldado norte-americano e feriu centenas de outros. De novo não havia provas que suportasse a teoria da culpabilidade de Gaddafi mas havia provas do envolvimento da Síria. Mas tudo foi manipulado pelo governo dos Estados Unidos por forma a que, finalmente, a Líbia fosse atacada. Assim, em Abril de 1986 os norte-americanos demonstraram o seu poder sem ter que enfrentar as perigosas consequências de atacar a Síria.
O que a administração Reagan fez com a Líbia do Coronel Gaddafi foi uma mistura de realidade e ficção. Este cenário construído fazia parte de um plano maior a que os conselheiros do presidente deram o nome de Perception Management (manutenção de percepção). O objectivo era contar histórias dramáticas que capturassem a imaginação da opinião pública, sobre todos os assuntos e países nos quais os Estados Unidos tivessem interesse ou necessidade de manipular. Não interessava se as histórias eram verdadeiras ou não, desde que desviassem a atenção das pessoas e evitassem os políticos de explicar as complexidades do mundo real. A realidade tornava-se um factor cada vez menos importante na política norte-americana nos anos de 1980. Era apenas algo com que tinha que se lidar e tudo era justificável desde que se atingisse o objectivo final.
A maior conquista do Perception Management foi atingida quando, como resultado colateral da invasão do Iraque no pós 11 de Setembro, foi pedida ajuda ao Coronel Gaddafi transformando-o agora como o novo melhor amigo e herói das democracias. Desta vez não apenas os políticos estiveram envolvidos no processo. Para esta redenção ter efeito houve a colaboração de espiões, relações públicas, apresentadores de televisão, académicos e músicos. Todo o establishment ocidental se tornaria cúmplice deste falso mundo.

Vladislav Surkov e o Avant garde da alienação de massas
No final da primeira década do novo século, o Ocidente debatia-se com problemas estruturais e falta de visão política no futuro. A entrega excessiva de poder às instituições financeiras e grandes corporações levaram à despolitização interna da vida pública, enquanto as visões simplistas do mundo foram expostas como perigosas e destrutivas.
Nessa época, na Rússia, havia um grupo de homens que via com igual descrença a política e igual incerteza o futuro; contudo, consideravam que essa circunstância lhes poderia servir de vantagem. Para que isso fosse proveitoso aos seus intentos, eles transformaram a política num bizarro teatro no qual ninguém sabe o que é verdadeiro ou o que é falso. Foram chamados de tecnólogos políticos e eram figuras centrais do estado russo, conselheiros do presidente Vladimir Putin. A eles se deve a manutenção do poder incontestável que Putin exerce há 15 anos.
Alguns deles são da geração de dissidentes da União Soviética dos anos de 1970, fortemente influenciados pelas histórias de ficção científica dos irmãos Strugatsky, que vinte anos depois, na Rússia pós-soviética, controlam os órgãos de comunicação social e usam esse poder para manipular o eleitorado em larga escala. Para eles a realidade é algo que pode ser intervencionada e moldada em qualquer coisa que se pretenda.
Entretanto, um destes tecnólogos emergiu, e as suas ideias tornaram-se centrais na consolidação de Putin no poder. O seu nome é Vladislav Surkov. Começou o seu percurso no mundo do drama, e os especialistas afirmam que ele adaptou ideias do teatro Avant Garde e as levou para o mundo da política. Surkov transformou a política russa numa constante e permanente mudança de peças teatrais. Usou dinheiro do Kremlin para apoiar todos os tipos de grupos, desde organizações de juventude antifascista a Skinheads neonazis; grupos liberais de direitos humanos que atacam o governo a partidos políticos que se opõem ao presidente Putin.
Mas a questão chave é que Surkov não escondeu nenhum dos seus actos. O seu objectivo não é apenas manipular as pessoas, mas ir mais além; pretende destruir a própria percepção do mundo. Um jornalista explicou esta realidade como “uma estratégia de poder que coloca qualquer oposição constantemente confusa numa mutação de forma sem fim, inexorável por ser indefinível”. Entretanto o poder real está noutro lugar, bem escondido do palco em que tudo isto ocorre, exercido sem que ninguém o veja.

o Jogo da pós-verdade
Entretanto, a mesma coisa parece estar a acontecer no Ocidente. É cada vez mais claro que o sistema tem falhas profundas. Todos os meses existem novas revelações sobre o envolvimento dos grandes bancos na corrupção mundial, a fuga aos impostos das grandes corporações ou da vigilância secreta de emails pela Nacional Security Agency. Porém, ninguém é acusado nem condenado exceptuando umas poucas pessoas dos níveis mais baixos. E por trás disto tudo uma gigante iniquidade continua a crescer, garantindo que a estrutura do poder se mantenha a mesma, porque nada pode destabilizar o sistema.
Eis então que a forma que estava a estabilizar se altera de novo. Essa mudança surge dos Estados Unidos durante a campanha presidencial de Donald Trump. Ela seria diferente de tudo o que alguma vez tinha acontecido anteriormente em política. Nada era fixo.
O que tinha dito, quem tinha atacado e como tinha atacado, estava constantemente em mutação e em deslocação. Trump usava discursos que poderiam ter saído dos movimentos Ocuppy assim como, ao mesmo tempo, usava o discurso racista dos extremistas brancos de direita. Desta forma levava os receios das pessoas ao limite, trazendo-os à luz do dia, validando-os como uma opção credível entre os que não acreditavam no sistema estabelecido.
Muitos dos factos que Trump apontou eram falsos, mas isso não lhe importava ou incomodava. Ele e a sua audiência sabiam que muito do que dizia tinha pouca relação com a realidade. Esta foi a derrota que ele infligiu ao jornalismo. A partir do momento em que o trabalho do jornalista consistia em expor as mentiras e assegurar a verdade, a sua irrelevância destruía a sua importância. Este é o jogo da pós-verdade, em que os factos objectivos têm menos importância que os apelos às emoções e às crenças pessoais.
Tanto Donald Trump quanto Vladislav Surkov perceberam que a versão da realidade apresentada pelos políticos já não era credível; as histórias por eles contadas durante décadas deixaram de fazer sentido. Tendo isso em consideração, é possível jogar-se com a realidade, alterando-a e modificando-a, e nesse processo serem minadas as antigas formas de poder, transferindo-as da esfera política para a esfera financeira.

A vida que segue
Enquanto a Síria implode, o mundo vive aparte da realidade desta guerra e desta região. A isso não é estranho o facto de não interessar a nenhum dos envolvidas o real conhecimento dos factos e para tal no campo de batalha estão a ser testadas as mais recentes formas de controle, alienação e desinformação. A Rússia, por exemplo, está a aplicar na Síria um formato de guerra que Surkov testou na Ucrânia durante a crise da Crimeia. O Nonlinear Warfare (conflito não-linear) é um novo tipo de guerra na qual nunca se sabe quem realmente é o inimigo. A intenção não é ganhar a guerra, mas usar o conflito para criar um permanente estado de destabilização de percepção, por forma a gerir e manter o controlo da situação. A verdade é que até agora ninguém sabe qual a justificação dos russos se envolveram directamente nesta guerra.
Paralelamente a todas estas ocorrências reais, o ciberespaço, antes tido como um território libertário e livre, uma renovada esperança para a sociedade decorrente da contracultura dos ácidos dos anos 60, tornou-se na mais fértil ferramenta de alienação e controle alguma vez criada. É de tal forma eficiente que são as pessoas se disponibilizam para serem objectos de controle.
A Inteligência Artificial foi criada para responder às nossas necessidades narcísicas, satisfazendo dessa forma o nosso individualismo crescente, fruto desta sociedade de início de milénio. Algoritmos capazes de prever as nossas reacções ajudam-nos a criar laços confortáveis, com respostas de satisfação imediata e sem qualquer tipo de contraditório. É um assistente que nos compreende e nos valoriza. Conformamo-nos com a atenção que nos é dada por uma máquina e, em contrapartida, cedemos-lhe o que de mais íntimo temos, a nossa individualidade, sem nos questionarmos ou preocuparmos com o destino final desses dados.
O novo processo de controle já está em marcha, e tudo leva a crer que estamos prontos para o aceitar e assumir como parte integrante da nossa construída, frenética e ansiosa existência. Marisa canta que “é a vida que segue e não espera pela gente” e ninguém quer ficar fora dessa vida, porque cada vez menos gente tem a capacidade de criar a sua.