Certo dia, acabava eu de embarcar no comboio para casa, quando dei pela conversa de certo grupo de rapazes que se sentava a poucos metros de mim, todos na casa dos 20. Verifiquei, com a estranheza própria da minha ignorância, que o tema do seu (aceso) debate era o «outfit» de uma rapariga, sua conhecida, isto é, a roupa que ela vestia. Por outras palavras, os objetos feitos de tecido que ela usava para cobrir o corpo, em conjunto com calçado e acessórios. Um dos rapazes, o principal orador do grupo, escolhera o Instagram como ferramenta de observação (tiro-lhe o meu chapéu por isso. Digo, por experiência própria, que é muito mais conveniente que os tradicionais binóculos. Os instagrammers não sofrem metade da discriminação que sofrem os mirones.) e, depois de escolhido o alvo da sua total atenção - a tal rapariga - iniciou o seu parecer sobre o modo como esta se apresentava. Confesso não ter tido oportunidade de vislumbrar nem uma das inúmeras imagens que certamente inundavam o ecrã dos seus binóculos portáteis – encontrava-me longe e estou certo de que o aparelho possuía menos polegadas do que aquelas que são permitidas por lei – mas, desculpando o inocente lapso de dito indivíduo aquando da compra do seu querido telemóvel, tive de me contentar com a descrição que se seguiu. E que descrição! (Soubesse eu que vinha aí tão competente discurso e nem teria arriscado os torcicolos que arrisquei a tentar espreitar o maldito do minúsculo telemóvel.) O rapaz começara a discorrer sobre a apresentação da rapariga de tal forma eloquente e apaixonada (pelo que dizia, não pela rapariga, infelizmente) que ponderei se me sentava a poucos metros de algum renomado estilista. As palavras deixavam-lhe os lábios com enorme facilidade, tinha um adjetivo para tudo, desde o «adorável» tom bege dos ténis, condizendo com a t-shirt, até ao «harmonioso» ângulo de corte das calças e sou da opinião que tão magnífico espetáculo teria continuado durante horas não fosse a impertinente impaciência dos seus colegas a censurá-lo. Ninguém calou Eça quando este descrevia o Ramalhete, aplaudem-no ainda hoje, aliás, e tenho a certeza que o senhor de monóculo maçou muito mais gente que o estilista do meu comboio. Temos de aprender a viver com cada injustiça...
Enfim, passaram-se os dias e foi com grande desgosto que me apercebi que tal tipo de acontecimento não era assim tão especial. Comecei a encontrar estilistas como o do comboio a toda a minha volta, cada vez eram mais. Por todos os lados eu ouvia julgamentos sobre o tom das calças ou sobre o corte da camisa. Não será preciso referir que a coisa acabou por perder o seu encanto. Um Ramalhete por ano ainda vai, mas dezenas de Ramalhetes todos os dias cansam um pouco a mente. Foi de tal forma a desgraçada decadência deste tipo de descrição que um dia eu mesmo dei comigo a julgar o look de um rapaz que passou por mim. Parece-me irrelevante que esse rapaz era eu, parece-me também irrelevante que o verde seco dos seus ténis não combinava de todo com o verde musgo da camisola. Mas parece-me irrelevante a mim porque sou ignorante e sem gosto. Há que respeitar a extrema importância deste tipo de questões.
O «poder pequenino» é assim, é poder porque move massas, põe-nas a pensar da forma que é conveniente aos sujeitos alienados que lucram disso; é pequenino porque não damos por ele, não o vemos em lado nenhum e ao mesmo tempo é mais omnipresente que Deus (nunca contei, mas tenho quase a certeza que o número de instagrammers é maior que o de padres. Qualquer dia averiguo). É assim porque vai à boleia da necessidade extrema de nos vermos representados, de pertencermos a algo, a um grupo, a uma matilha. No fundo, é assim porque temos esta necessidade de sermos amados, que já deu mais dinheiro aos já referidos sujeitos alienados que a carrinha que vendia pão com chouriço em frente à minha escola alguma vez deu aos seu donos (e relembro que vendia por dia o bastante para alimentar um exército). O «poder pequenino» é perigoso porque um dia acordamos e estamos todos preocupados com a indumentária que levamos para o trabalho ou para a escola enquanto alguém ganha dinheiro com isso ao mesmo tempo que mata uns quantos na América do Sul. Não penso que haja qualquer tipo de problema com essa atitude por parte das massas, com a importantíssima exceção de não ser uma escolha.