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Em
2015 assinalou-se os 50 anos de um dos mais afamados filmes da história do
cinema, vencedor de cinco Óscares, incluindo o de Melhor Filme: The Sound of Music (no original), Música no coração, na versão portuguesa,
A noviça rebelde, na versão
brasileira e argentina.
O
filme é um bom exemplo de como é possível combinar qualidade e sucesso
comercial. O realizador, Robert Wise, explica a receita: música de primeira
qualidade, num cenário paradisíaco, com uma história verídica e comovente, que
tem como protagonistas as crianças.
Adaptação
tipicamente hollywoodesca, a intriga é sobejamente conhecida: Maria, noviça de
um convento em Salzburgo, é enviada pela abadessa para a mansão do Capitão von
Trapp, oficial da marinha e viúvo, como perceptora dos seus sete filhos menores,
com o intuito de por à prova a sua vocação religiosa. O primeiro choque da
noviça é com as regras intransigentes e a disciplina militarizada que o pai impõe
aos filhos. Aproveitando as ausências do Capitão, Maria desfaz esses princípios
educativos, ensina as crianças a cantar, a rir e a brincar livremente pelos
campos, ganhando a amizade e confiança dos filhos do Capitão. Quando este
regressa, acompanhado da baronesa com quem projeta casar, a baronesa exige que
Maria retorne ao convento, mas será ela a deixar von Trapp, receosa de assumir
a responsabilidade de casar com um homem com sete filhos, que só em Maria
reconhecem afecto maternal. O casamento do Capitão com a perceptora dos filhos
realiza-se na capela do convento onde ela fora noviça, ante a felicidade das
crianças.
O
filme poderia terminar aqui, com este tradicional final feliz, se não fosse o
contexto político que envolve a intriga romanesca: com a ocupação da Áustria pela
Alemanha nazi, von Trapp planeia o exílio e a despedida da pátria, durante a
exibição pública da família num festival de canto: a família escapa,
dramaticamente, do palco e dos aplausos da plateia para o cemitério do
convento, de onde, por túneis secretos, consegue evadir-se e subir a montanha, numa
ascensão rumo à liberdade, levando como único espólio a voz dos seus cantos,
que ainda hoje encantam e seduzem. O filme termina no cimo da montanha, numa representação
do valor da liberdade, ao som de uma mensagem repleta de significação: Climb every mountain. Neste contexto, a «moral
da história» é mostrar como o amor e a união da família conseguem vencer todas
as adversidades.
Música no coração é um filme de estereótipos
tipicamente ocidentais, na representação das classes sociais dominantes, da felicidade
da mulher reduzida à sua função maternal, do apego à terra natal. Mas é igualmente
possível ler o filme como denúncia e contestação desses estereótipos. A facilidade
com que se dá a reviravolta contra o «politicamente correto» é uma boa imagem
dos valores que têm norteado a nossa civilização. E a caracterização de Maria não
encaixa no papel passivo da fada do lar, idealizado pela sociedade. Maria pensa
e age por si, não se subjuga aos valores correntes do domínio do homem.
Simultaneamente rebelde e carinhosa, não fascina pelo decote, nem pelo
ornamento, mas por se apresentar despida de todos os clichês e convenções.
Na história
verídica, por detrás da representação cinematográfica, Georg von Trapp, Capitão
da marinha do império austro-húngaro, casou em 1910 com Lady Whitehead, que
morreu em 1924, deixando sete filhos. Maria Kutschera frequentou a escola e recebeu
uma educação socialista e ateia. Um dia, entrou numa igreja para ouvir um
concerto de Bach e saiu decidida a ser freira. A abadessa do convento mandou-a durante
um ano para a mansão von Trapp, para cuidar de uma filha doente. Terminado esse
ano, quando Maria se preparava para regressar ao convento, os filhos do Capitão
pediram ao pai que intercedesse para que ela continuasse com eles e sugeriram-lhe
que casasse com ela. A resposta do pai terá sido «Acho que ela nem gosta de
mim». As crianças trataram, então, do assunto à sua maneira. Perguntaram a
Maria se gostava do pai e a resposta foi «Yes, I do». Muitos anos depois, Maria
viria a confessar que, de quem realmente gostava era das crianças, por isso não
lhes poderia ter dado outra resposta. É que Maria também perdera a mãe aos dois
anos e sabia bem o que era viver sem mãe.
O Capitao
von Trapp casa com a perceptora dos filhos em 1927 e em 1935 o padre Wasner,
amigo da família, motiva-os a desenvolverem o seu passatempo preferido, a
música, ensaiando-os e convencendo-os a participar nos festivais musicais da
cidade. O encanto das suas vozes e da sua presença levou o grupo coral familiar
a alcançar o primeiro prémio no festival de Salzburgo desse mesmo ano.
Em
1938, com a anexação da Áustria à Alemanha, o Capitão foi escolhido para ocupar
um alto cargo na marinha alemã. Mas os Trapp decidiram abdicar desse privilégio
e, de mochilas às costas, vestidos como se fossem para os seus habituais
passeios de montanhismo, apanharam o comboio para a fronteira com a Itália, e
de lá seguiram para Londres, onde apanharam o barco para os Estados Unidos.
Quando desembarcaram em Nova Iorque, em setembro de 1938, eram já nove os
filhos que os acompanhavam, com o décimo filho prestes a nascer. Acompanhava-os
também o padre Wasner, o diretor espiritual e musical da família. Sob a sua
direção, «The Trapp Family Singers» percorreram os Estados Unidos dando
concertos, e a caravana onde se deslocavam foi a casa da família durante dois
anos.
Em
1941, o casal comprou uma propriedade no estado americano de Vermont, num cenário
semelhante ao das montanhas de Salzburgo. Seis anos depois falecia o Capitão. Para
ajudar a promover o grupo coral familiar após a morte do marido, e para ajudar
nas despesas familiares, Maria von Trapp publica, em 1949, The Story of The Trapp Family. Durante cerca de 20 anos, a família deu
concertos por todo o mundo. E a comovente história da jovem noviça, que se
tornou baronesa pela sua dedicação a sete crianças órfãs de mãe, ia
conquistando cada vez mais fãs. A primeira adaptação cinematográfica do livro
surgiu na Alemanha, com dois filmes: The
Trapp Family (1956) e The Trapp
Family in Amerika (1958), que foram êxitos de bilheteira na Alemanha e na
Áustria do pós-guerra.
Em
1959, a Broadway estreou The Sound of Music,
que se manteve em cena durante três anos. Estava aberto o caminho para que
Hollywood se aventurasse num dispendioso filme musical com o mesmo nome. O
filme não se mantém fiel aos factos que Maria relata no livro, facto que desagradou profundamente à família
Trapp.
Em
1980, um incêndio destruiu por completo a casa austríaca de Vermont. Já idosa, Maria
levou a cabo a reconstrução do chalé, hoje transformado numa pousada de
alojamento, e a família voltou a reconstruir o futuro, com alicerces nas suas
raízes austríacas. Maria morreu em 1987.
Mais
de meio século decorrido sobre o imaginário da realidade virtual do filme e dos
factos históricos por detrás desse imaginário, vivemos hoje a época do on line, do directo, do imediato. Esta
realidade faz-nos tomar consciência de que o Cinema é, de facto, uma máquina do
tempo, capaz de criar e de recriar a História e as histórias individuais. Como
afirma Foucault, ao falar do D. Quixote, o que realmente importa não é a «façanha»,
mas a capacidade de «transformar a realidade em signo». The Sound of Music é um bom exemplo dessa capacidade.
Referências (acedido em maio
de 2018):
Michel Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora
Ltda., 8ª ed., 1999.
