domingo, 27 de maio de 2018

The Sound of Music: O Cinema como Representação


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     Em 2015 assinalou-se os 50 anos de um dos mais afamados filmes da história do cinema, vencedor de cinco Óscares, incluindo o de Melhor Filme: The Sound of Music (no original), Música no coração, na versão portuguesa, A noviça rebelde, na versão brasileira e argentina.    
     O filme é um bom exemplo de como é possível combinar qualidade e sucesso comercial. O realizador, Robert Wise, explica a receita: música de primeira qualidade, num cenário paradisíaco, com uma história verídica e comovente, que tem como protagonistas as crianças.
     Adaptação tipicamente hollywoodesca, a intriga é sobejamente conhecida: Maria, noviça de um convento em Salzburgo, é enviada pela abadessa para a mansão do Capitão von Trapp, oficial da marinha e viúvo, como perceptora dos seus sete filhos menores, com o intuito de por à prova a sua vocação religiosa. O primeiro choque da noviça é com as regras intransigentes e a disciplina militarizada que o pai impõe aos filhos. Aproveitando as ausências do Capitão, Maria desfaz esses princípios educativos, ensina as crianças a cantar, a rir e a brincar livremente pelos campos, ganhando a amizade e confiança dos filhos do Capitão. Quando este regressa, acompanhado da baronesa com quem projeta casar, a baronesa exige que Maria retorne ao convento, mas será ela a deixar von Trapp, receosa de assumir a responsabilidade de casar com um homem com sete filhos, que só em Maria reconhecem afecto maternal. O casamento do Capitão com a perceptora dos filhos realiza-se na capela do convento onde ela fora noviça, ante a felicidade das crianças.
     O filme poderia terminar aqui, com este tradicional final feliz, se não fosse o contexto político que envolve a intriga romanesca: com a ocupação da Áustria pela Alemanha nazi, von Trapp planeia o exílio e a despedida da pátria, durante a exibição pública da família num festival de canto: a família escapa, dramaticamente, do palco e dos aplausos da plateia para o cemitério do convento, de onde, por túneis secretos, consegue evadir-se e subir a montanha, numa ascensão rumo à liberdade, levando como único espólio a voz dos seus cantos, que ainda hoje encantam e seduzem. O filme termina no cimo da montanha, numa representação do valor da liberdade, ao som de uma mensagem repleta de significação: Climb every mountain. Neste contexto, a «moral da história» é mostrar como o amor e a união da família conseguem vencer todas as adversidades.
     Música no coração é um filme de estereótipos tipicamente ocidentais, na representação das classes sociais dominantes, da felicidade da mulher reduzida à sua função maternal, do apego à terra natal. Mas é igualmente possível ler o filme como denúncia e contestação desses estereótipos. A facilidade com que se dá a reviravolta contra o «politicamente correto» é uma boa imagem dos valores que têm norteado a nossa civilização. E a caracterização de Maria não encaixa no papel passivo da fada do lar, idealizado pela sociedade. Maria pensa e age por si, não se subjuga aos valores correntes do domínio do homem. Simultaneamente rebelde e carinhosa, não fascina pelo decote, nem pelo ornamento, mas por se apresentar despida de todos os clichês e convenções.
     Na história verídica, por detrás da representação cinematográfica, Georg von Trapp, Capitão da marinha do império austro-húngaro, casou em 1910 com Lady Whitehead, que morreu em 1924, deixando sete filhos. Maria Kutschera frequentou a escola e recebeu uma educação socialista e ateia. Um dia, entrou numa igreja para ouvir um concerto de Bach e saiu decidida a ser freira. A abadessa do convento mandou-a durante um ano para a mansão von Trapp, para cuidar de uma filha doente. Terminado esse ano, quando Maria se preparava para regressar ao convento, os filhos do Capitão pediram ao pai que intercedesse para que ela continuasse com eles e sugeriram-lhe que casasse com ela. A resposta do pai terá sido «Acho que ela nem gosta de mim». As crianças trataram, então, do assunto à sua maneira. Perguntaram a Maria se gostava do pai e a resposta foi «Yes, I do». Muitos anos depois, Maria viria a confessar que, de quem realmente gostava era das crianças, por isso não lhes poderia ter dado outra resposta. É que Maria também perdera a mãe aos dois anos e sabia bem o que era viver sem mãe.
     O Capitao von Trapp casa com a perceptora dos filhos em 1927 e em 1935 o padre Wasner, amigo da família, motiva-os a desenvolverem o seu passatempo preferido, a música, ensaiando-os e convencendo-os a participar nos festivais musicais da cidade. O encanto das suas vozes e da sua presença levou o grupo coral familiar a alcançar o primeiro prémio no festival de Salzburgo desse mesmo ano.
     Em 1938, com a anexação da Áustria à Alemanha, o Capitão foi escolhido para ocupar um alto cargo na marinha alemã. Mas os Trapp decidiram abdicar desse privilégio e, de mochilas às costas, vestidos como se fossem para os seus habituais passeios de montanhismo, apanharam o comboio para a fronteira com a Itália, e de lá seguiram para Londres, onde apanharam o barco para os Estados Unidos. Quando desembarcaram em Nova Iorque, em setembro de 1938, eram já nove os filhos que os acompanhavam, com o décimo filho prestes a nascer. Acompanhava-os também o padre Wasner, o diretor espiritual e musical da família. Sob a sua direção, «The Trapp Family Singers» percorreram os Estados Unidos dando concertos, e a caravana onde se deslocavam foi a casa da família durante dois anos.
     Em 1941, o casal comprou uma propriedade no estado americano de Vermont, num cenário semelhante ao das montanhas de Salzburgo. Seis anos depois falecia o Capitão. Para ajudar a promover o grupo coral familiar após a morte do marido, e para ajudar nas despesas familiares, Maria von Trapp publica, em 1949, The Story of The Trapp Family. Durante cerca de 20 anos, a família deu concertos por todo o mundo. E a comovente história da jovem noviça, que se tornou baronesa pela sua dedicação a sete crianças órfãs de mãe, ia conquistando cada vez mais fãs. A primeira adaptação cinematográfica do livro surgiu na Alemanha, com dois filmes: The Trapp Family (1956) e The Trapp Family in Amerika (1958), que foram êxitos de bilheteira na Alemanha e na Áustria do pós-guerra.
     Em 1959, a Broadway estreou The Sound of Music, que se manteve em cena durante três anos. Estava aberto o caminho para que Hollywood se aventurasse num dispendioso filme musical com o mesmo nome. O filme não se mantém fiel aos factos que Maria relata no livro, facto que desagradou profundamente à família Trapp.
     Em 1980, um incêndio destruiu por completo a casa austríaca de Vermont. Já idosa, Maria levou a cabo a reconstrução do chalé, hoje transformado numa pousada de alojamento, e a família voltou a reconstruir o futuro, com alicerces nas suas raízes austríacas. Maria morreu em 1987.    
     Mais de meio século decorrido sobre o imaginário da realidade virtual do filme e dos factos históricos por detrás desse imaginário, vivemos hoje a época do on line, do directo, do imediato. Esta realidade faz-nos tomar consciência de que o Cinema é, de facto, uma máquina do tempo, capaz de criar e de recriar a História e as histórias individuais. Como afirma Foucault, ao falar do D. Quixote, o que realmente importa não é a «façanha», mas a capacidade de «transformar a realidade em signo». The Sound of Music é um bom exemplo dessa capacidade.

Referências (acedido em maio de 2018):
Michel Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 8ª ed., 1999.