quarta-feira, 30 de maio de 2018

DA CAVERNA À SUBLIMAÇÃO

Ao longo da sua existência o Homo Sapiens conseguiu conquistar todo o planeta e dominar todas as outras espécies. Mudou irreparavelmente a paisagem terrestre, provocou dramáticas alterações ecológicas, extinguiu espécies e hoje tem o poder de modificar o processo evolutivo da sua própria espécie ao tornar-se dono do seu próprio ADN.

Até há cerca de 100 mil anos várias espécies de hominídeos percorriam vastos territórios do planeta em busca de alimento e abrigo. Australopithecus, Homo Habilis, Homo Erectus, Homo Neanderthalensis coexistiam com outro hominídeo sem nada de especial, o Homo Sapiens. Esse hominídeo levava a sua existência sem causar grandes impactos no mundo ou nas suas comunidades. Como todos os outros animais vivia de acordo com a sua natureza, não inovava, não quebrava regras, não transcendia a sua natureza.

Mas há cerca de 70 mil anos algo aconteceu que provocou alterações no programa existencial desse hominídeo. A esse momento de viragem chamamos Revolução Cognitiva. A partir desse período o Homem começa a pensar no mundo de uma forma abstrata. Pela primeira vez tinha a capacidade de contar histórias e ficções. O ato de contar histórias é um dos traços que mais caracteriza a humanidade, é o que nos possibilitou, ao longo da história, construir amizades, hierarquias, caçar ou lutar juntos. Ao contrário de outros primatas, como os chimpanzés, que constroem colónias de até 50 indivíduos, nós conseguimos formar bandos maiores e mais estáveis. Com as ficções surgiram os mitos, e com eles as religiões. Essa enorme transformação permitiu que grupos de elevado número de indivíduos, ligados entre si por crenças comuns, colaborassem e contribuíssem para causas maiores. O surgimento das ficções permitiu que grandes números de indivíduos pudessem cooperar se acreditassem na mesma história. A cooperação humana em grande escala depende da existência de mitos partilhados que apenas existem na imaginação coletiva. Isso permitiu que dois católicos que nunca se conheceram, por exemplo, pudessem lutar juntos nas cruzadas. Dois advogados que nunca se viram possam trabalhar juntos para defender um desconhecido, baseados num sistema judicial e mitos jurídicos partilhados. Um exemplo do quotidiano, o dinheiro. Objetivamente o dinheiro pouco valor tem. Uma nota ou uma moeda não serve para comer ou para nos cobrir. Um cartão de crédito ou débito para muito menos ainda. Mas no mito que juntos partilhamos ele passa a ser real. O dinheiro é um sistema de confiança mútua. O dinheiro é o mais universal e eficiente sistema de confiança mútua que o Homem inventou. Independentemente da religião, credo, ou cultura todos têm um grande apreço por dinheiro. Todos acreditam na sua existência. Ele é real. É esse fenómeno de contar histórias e de criar mitos que mobiliza milhões de pessoas em torno de objetivos comuns que é conhecido comoRealidade Imaginada.
Outros animais sociais, com divisão de tarefas e organizados em classes como no caso das abelhas, não têm a capacidade de se unir em torno de causas. Nessas sociedades não há regicídios nem revoluções operárias. Não há essa flexibilidade. Só a espécie humana tem essa sofisticação. Ao contrário das abelhas, o homem consegue sair da sua programação para resolver problemas e mudar o curso da sua vivência.
No segundo grande salto evolutivo, com a revolução agrícola, o homo sapiens tornou-se sedentário. Passou a cultivar os solos e a domesticar a caça. Com esta mudança deu-se um enorme crescimento populacional. O alimento era mais abundante, e eram exigidos mais braços para trabalhar a terra. Associados a esta mudança surgiram novos problemas. As secas, pragas, roubos e guerras obrigaram naturalmente ao surgimento de novas estruturas sociais, mais complexas. Surgem as cidades, exércitos, moedas, estados e um crescente fluxo de trocas entre diferentes culturas e regiões.

Em meados do século XV, com a expansão marítima europeia, o mundo transforma-se drasticamente. É o início da era da globalização e da revolução científica. O conhecimento rigoroso e objetivo dos mecanismos que regem a Natureza e o Universo trouxeram ao Homem um crescente conforto e bem-estar. Ao longo dos últimos 500 anos uma corrida pelo conhecimento e procura de soluções, que evolui de uma forma exponencial e se autoalimenta, mudou profundamente o mundo. A partir do século XIX a ciência registou enormes progressos, afastando cada vez mais o sujeito da sua experiência de vida biológica.

Presentemente, os progressos científicos e tecnológicos nas áreas da genética, biotecnologia, nanotecnologia, medicina, informática e inteligência artificial parecem conduzir-nos ao que alguns especialistas chamam a singularidade tecnológica. Este é o evento histórico, algures num futuro muito próximo, em que a inteligência artificial superará a inteligência humana, provocando alterações profundas na própria natureza humana.

Filósofos e cientistas discutem cada vez mais as questões éticas e como prevenir o que acontecerá se perdermos o controlo das nossas máquinas. Alguns estudiosos argumentam que este será o fim da humanidade. Num futuro em que as máquinas tivessem capacidades cognitivas superiores às do seu criador, e não dependessem mais dele para se auto-aperfeiçoarem, o Homem tornar-se-ia obsoleto.

Outros acreditam que após este acontecimento os sistemas computacionais tornar-se-iam autoconscientes e os interfaces homem-máquina seriam tão complexos que seria necessário um processo evolutivo, físico, do próprio homem e a ampliação da inteligência humana através da biotecnologia e da nanotecnologia. A integração homem-computador seria necessária para o surgimento de uma superinteligência hibrida. Essas alterações tão profundas levariam os humanos a evoluir para uma nova espécie biomecânica – o übermensch. Uma nova espécie capaz de superar as suas limitações cognitivas, ligada em rede, e em que o indivíduo se funde com o todo, à imagem do que acontece nas modernas redes computacionais. Uma espécie que evoluiria, uma vez mais, alcançando a transcendência ao abdicar do seu corpo e pela sublimação da mente biológica para uma entidade hibrida e coletiva.

Influência do poder na criação artística

Ainda que uma criação artística tenha, em grande parte, uma influência cultural e social, é o meio de manifestação mais próximo ao que é natural no ser humano.

Sendo suporte de ideias e conceitos intrínsecos no pensamento íntimo, privado e pessoal, a obra de arte terá sempre um tronco moldado por fatores culturais que não dependem da vontade consciente do criador, já que este também transporta consigo um manto cultural quase impossível de se desfazer (para averiguar esta possibilidade teria de se propor uma isolação do artista durante um período de tempo suficiente para se desprender da cultura e da tradição do meio social). 
Toda esta ideia de  contextualização cria os cânones da arte, que aos olhos do receptor serão os pontos fixos em qualquer noção de criação artística,  porém sendo a arte uma extensão do pensamento consciente e inconsciente, comporta uma liberdade absoluta, inconformista e quase ilimitada (pelo menos tanto quanto a imaginação permitir).  
Esta dualidade entre racionalidade e sensibilidade inerente à essência da criação, torna-se quase perigosa na medida em  que pode corromper os cânones da arte (por princípios ligados à ideia de ruptura como fator de regeneração) e expandir-se.

Falando num contexto nacional, o problema põe-se na análise da actuação do poder sobre a vertente artística. A perpetuação dos cânones da arte é quase impossível e é previsível anteceder novas formas de criar realidades transcendentes, então o poder age a favor dos cânones para camuflar a possibilidade de contágio que cada nova criação contém.
Um exemplo é o curso cientifico-humanístico de Artes Visuais no ensino secundário, um ensino público porém básico e elementar que se sustenta de noções muito convencionais e pouco experimentais. O problema talvez se ponha na pouca aposta ao campo das artes em Portugal, e no ensino secundário este campo é tratado de uma forma superficial e pouco complexa. 

Será que a pouca actuação do poder sobre o domínio das artes em Portugal se deve a este temor pela liberdade que a criação artística propõe? Será que se deve ao medo de alcançar uma realidade que se procura inconscientemente? 

PROCESSOS DE CONTROLE E ALIENAÇÃO DAS MASSAS


O enredo do livro Road side picnic, de Arcady e Boris Strugatsky, desenrola-se num dos seis locais na Terra onde teriam ocorrido visitas extraterrestres. Estranhamente essas visitas não foram presenciadas por ninguém das comunidades vizinhas, nem sequer os meios em que chegaram ou partiram os alienígenas. No entanto, estes seres deixaram vestígios nesses locais, conhecidos como Zonas de Visitação. Essas Zonas foram prontamente isoladas das populações locais; continham artefactos desconhecidos e com propriedades inexplicáveis que apresentavam fenómenos estranhos e perigosos, quase sobrenaturais, não compreendidos pelos humanos. Nelas, a realidade não era nada do que parecia.
Os irmãos Strugatsky, escritores soviéticos de ficção científica, inspiraram movimentos de dissidência nos anos 1970 e 80, no seu país. Road side picnic, 1971, publicado na União Soviética em 1977 (adaptado ao cinema em 1979 por Andrei Tarkovsky com o título Stalker), foi uma das obras mais importantes e influente nesses movimentos. À época, a ficção por eles criada mimetizava a realidade da sociedade soviética, que vivia uma verdade diferente da oficialmente difundida.

A hipernormalização da SOCIEDADE SOVIÉTICA
Era claro nos anos de 1980 que o sonho original da União Soviética, de criar um glorioso mundo novo no qual as sociedades e as próprias pessoas seriam transformadas, tornando-se novos e melhores seres humanos, tinha falhado. O país tinha-se tornado numa sociedade na qual ninguém acreditava em nada ou sequer tinha alguma visão de futuro. No projecto inicial desta sociedade socialista, os líderes soviéticos acreditavam ser possível planear e controlar tudo, mas por esta altura já tinham percebido que isso era impossível. O plano saiu de controle e os tecnocratas optaram por não revelar esta evidência, preferindo fingir que tudo estava a correr bem com o plano inicial. Surgia assim uma versão falsa da realidade.
Anos mais tarde, em 2006, o antropólogo russo Alexei Yurchak criou, no seu livro Everything was forever, until it was no more: the last Soviet generation, um termo para este estado da sociedade: hipernormalização. Ele reflecte a normalidade criada para além da realidade, uma versão falsa da vida que era a realidade oficial imposta. Esta verdade era uma alternativa simplificada e positiva. A população sabia que o que os seus líderes diziam não era real, porque eles viam o colapso económico do país a acontecer, mas todos tinham que fingir e agir como se fosse porque ninguém conseguia imaginar nenhuma alternativa ao sistema vigente.

Perception Management como dispositivo de gestão DE emoções
Em Dezembro de 1982, Israel enviou um exército massivo para cercar os campos de refugiados Palestinianos no Líbano, com a finalidade de destruir a Organização de Libertação da Palestina (OLP). Dois meses depois, milhares de refugiados palestinianos foram massacrados nos campos de Sabra e de Chatilla, numa acção militar israelita e de uma facção cristã Libanesa que chocou o mundo. Perante o horror e o caos crescente na região o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, anunciou que os Marines iriam para Beirute liderar uma força de manutenção de paz.
Apesar de Reagan insistir que as tropas eram neutrais, o presidente Hafez al-Assad da Síria, pai do actual presidente, acreditava existir outras motivações. Ele viu as tropas no território como parte de uma conspiração antiga, e crescente, dos Estados Unidos e de Israel para dividir o Médio Oriente em facções, destruindo assim o poder Árabe. Por todos estes motivos, Assad decidiu tirar os americanos do Médio Oriente. Para essa campanha ele estabeleceu uma aliança com a nova força revolucionaria do Irão do Aiatolá Khomeini. Desta aliança, Assad adoptou uma nova arma recém criada pelos iranianos e utilizada quando o país fora atacado pelo Iraque, conhecida como a “bomba atómica dos pobres”, o bombista suicida.
Em Outubro de 1983, dois bombistas suicidas fizeram-se explodir em camiões contra acampamentos de Marines em Beirute, matando 241 norte-americanos. Os membros pertenciam a um novo grupo que nunca ninguém tinha ouvido falar, o Hezbollah. Apesar de grande parte dos membros do Hezbollah fossem iranianos, o grupo era controlado pela Síria e pelos seus serviços de inteligência. Quatro meses após esta ocorrência, todas as tropas norte-americanas foram retiradas de Beirute. Esta foi uma enorme conquista para o presidente Assad.
Em face desta humilhante derrota no Líbano, o governo do presidente Reagan necessitava, em plena Guerra Fria, tornar-se o guardião da luta do bem contra o mal, mantendo a imagem de defensor dos valores do Ocidente, da Liberdade e da Democracia. Para que isto acontecesse era necessário criar um vilão. Um inimigo imaginário, um falso mestre terrorista, que pudesse ser o objecto de foco e, dessa forma, desviar a atenção da realidade complexa das politicas no Médio Oriente. O candidato ideal a vilão era o Coronel Muammar al-Gaddafi, presidente da Líbia. Em meados dos anos de 1980, Gaddafi era uma figura isolada, sem amigos ou influência global.
Em Dezembro de 1985, dois ataques terroristas simultâneos atingiram os aeroportos de Viena e de Roma, matando 19 pessoas incluindo cinco norte-americanos. Quase de imediato o presidente Ronald Reagan anuncia que o Coronel Gaddafi era o responsável pelos ataques. Porém os serviços de segurança europeus, que investigaram os ataques, estavam convencidos que a Líbia não estava envolvida mas sim a Síria. Apesar de não haver evidências do envolvimento de Gaddafi nos ataques, ele não fez questão de se demarcar deles, tornando o caso mais complexo, transformando-o numa crise global.
Este foi o início de uma longa campanha que criou uma poderosa imagem, para o Ocidente, de Gaddafi como um vilão global que liderava um “Estado Criminoso”. O Coronel usou esta publicidade, dada pelos americanos, de forma dramática, construindo para si uma imagem de temido e poderoso líder revolucionário internacional, que tinha por missão libertar os povos oprimidos. Os Estados Unidos e Gaddafi ficavam desta forma presos num ciclo de reforço mútuo e assim foram construindo um mundo ficcional.
Um novo ataque terrorista ocorrido numa discoteca em Berlim Ocidental matou um soldado norte-americano e feriu centenas de outros. De novo não havia provas que suportasse a teoria da culpabilidade de Gaddafi mas havia provas do envolvimento da Síria. Mas tudo foi manipulado pelo governo dos Estados Unidos por forma a que, finalmente, a Líbia fosse atacada. Assim, em Abril de 1986 os norte-americanos demonstraram o seu poder sem ter que enfrentar as perigosas consequências de atacar a Síria.
O que a administração Reagan fez com a Líbia do Coronel Gaddafi foi uma mistura de realidade e ficção. Este cenário construído fazia parte de um plano maior a que os conselheiros do presidente deram o nome de Perception Management (manutenção de percepção). O objectivo era contar histórias dramáticas que capturassem a imaginação da opinião pública, sobre todos os assuntos e países nos quais os Estados Unidos tivessem interesse ou necessidade de manipular. Não interessava se as histórias eram verdadeiras ou não, desde que desviassem a atenção das pessoas e evitassem os políticos de explicar as complexidades do mundo real. A realidade tornava-se um factor cada vez menos importante na política norte-americana nos anos de 1980. Era apenas algo com que tinha que se lidar e tudo era justificável desde que se atingisse o objectivo final.
A maior conquista do Perception Management foi atingida quando, como resultado colateral da invasão do Iraque no pós 11 de Setembro, foi pedida ajuda ao Coronel Gaddafi transformando-o agora como o novo melhor amigo e herói das democracias. Desta vez não apenas os políticos estiveram envolvidos no processo. Para esta redenção ter efeito houve a colaboração de espiões, relações públicas, apresentadores de televisão, académicos e músicos. Todo o establishment ocidental se tornaria cúmplice deste falso mundo.

Vladislav Surkov e o Avant garde da alienação de massas
No final da primeira década do novo século, o Ocidente debatia-se com problemas estruturais e falta de visão política no futuro. A entrega excessiva de poder às instituições financeiras e grandes corporações levaram à despolitização interna da vida pública, enquanto as visões simplistas do mundo foram expostas como perigosas e destrutivas.
Nessa época, na Rússia, havia um grupo de homens que via com igual descrença a política e igual incerteza o futuro; contudo, consideravam que essa circunstância lhes poderia servir de vantagem. Para que isso fosse proveitoso aos seus intentos, eles transformaram a política num bizarro teatro no qual ninguém sabe o que é verdadeiro ou o que é falso. Foram chamados de tecnólogos políticos e eram figuras centrais do estado russo, conselheiros do presidente Vladimir Putin. A eles se deve a manutenção do poder incontestável que Putin exerce há 15 anos.
Alguns deles são da geração de dissidentes da União Soviética dos anos de 1970, fortemente influenciados pelas histórias de ficção científica dos irmãos Strugatsky, que vinte anos depois, na Rússia pós-soviética, controlam os órgãos de comunicação social e usam esse poder para manipular o eleitorado em larga escala. Para eles a realidade é algo que pode ser intervencionada e moldada em qualquer coisa que se pretenda.
Entretanto, um destes tecnólogos emergiu, e as suas ideias tornaram-se centrais na consolidação de Putin no poder. O seu nome é Vladislav Surkov. Começou o seu percurso no mundo do drama, e os especialistas afirmam que ele adaptou ideias do teatro Avant Garde e as levou para o mundo da política. Surkov transformou a política russa numa constante e permanente mudança de peças teatrais. Usou dinheiro do Kremlin para apoiar todos os tipos de grupos, desde organizações de juventude antifascista a Skinheads neonazis; grupos liberais de direitos humanos que atacam o governo a partidos políticos que se opõem ao presidente Putin.
Mas a questão chave é que Surkov não escondeu nenhum dos seus actos. O seu objectivo não é apenas manipular as pessoas, mas ir mais além; pretende destruir a própria percepção do mundo. Um jornalista explicou esta realidade como “uma estratégia de poder que coloca qualquer oposição constantemente confusa numa mutação de forma sem fim, inexorável por ser indefinível”. Entretanto o poder real está noutro lugar, bem escondido do palco em que tudo isto ocorre, exercido sem que ninguém o veja.

o Jogo da pós-verdade
Entretanto, a mesma coisa parece estar a acontecer no Ocidente. É cada vez mais claro que o sistema tem falhas profundas. Todos os meses existem novas revelações sobre o envolvimento dos grandes bancos na corrupção mundial, a fuga aos impostos das grandes corporações ou da vigilância secreta de emails pela Nacional Security Agency. Porém, ninguém é acusado nem condenado exceptuando umas poucas pessoas dos níveis mais baixos. E por trás disto tudo uma gigante iniquidade continua a crescer, garantindo que a estrutura do poder se mantenha a mesma, porque nada pode destabilizar o sistema.
Eis então que a forma que estava a estabilizar se altera de novo. Essa mudança surge dos Estados Unidos durante a campanha presidencial de Donald Trump. Ela seria diferente de tudo o que alguma vez tinha acontecido anteriormente em política. Nada era fixo.
O que tinha dito, quem tinha atacado e como tinha atacado, estava constantemente em mutação e em deslocação. Trump usava discursos que poderiam ter saído dos movimentos Ocuppy assim como, ao mesmo tempo, usava o discurso racista dos extremistas brancos de direita. Desta forma levava os receios das pessoas ao limite, trazendo-os à luz do dia, validando-os como uma opção credível entre os que não acreditavam no sistema estabelecido.
Muitos dos factos que Trump apontou eram falsos, mas isso não lhe importava ou incomodava. Ele e a sua audiência sabiam que muito do que dizia tinha pouca relação com a realidade. Esta foi a derrota que ele infligiu ao jornalismo. A partir do momento em que o trabalho do jornalista consistia em expor as mentiras e assegurar a verdade, a sua irrelevância destruía a sua importância. Este é o jogo da pós-verdade, em que os factos objectivos têm menos importância que os apelos às emoções e às crenças pessoais.
Tanto Donald Trump quanto Vladislav Surkov perceberam que a versão da realidade apresentada pelos políticos já não era credível; as histórias por eles contadas durante décadas deixaram de fazer sentido. Tendo isso em consideração, é possível jogar-se com a realidade, alterando-a e modificando-a, e nesse processo serem minadas as antigas formas de poder, transferindo-as da esfera política para a esfera financeira.

A vida que segue
Enquanto a Síria implode, o mundo vive aparte da realidade desta guerra e desta região. A isso não é estranho o facto de não interessar a nenhum dos envolvidas o real conhecimento dos factos e para tal no campo de batalha estão a ser testadas as mais recentes formas de controle, alienação e desinformação. A Rússia, por exemplo, está a aplicar na Síria um formato de guerra que Surkov testou na Ucrânia durante a crise da Crimeia. O Nonlinear Warfare (conflito não-linear) é um novo tipo de guerra na qual nunca se sabe quem realmente é o inimigo. A intenção não é ganhar a guerra, mas usar o conflito para criar um permanente estado de destabilização de percepção, por forma a gerir e manter o controlo da situação. A verdade é que até agora ninguém sabe qual a justificação dos russos se envolveram directamente nesta guerra.
Paralelamente a todas estas ocorrências reais, o ciberespaço, antes tido como um território libertário e livre, uma renovada esperança para a sociedade decorrente da contracultura dos ácidos dos anos 60, tornou-se na mais fértil ferramenta de alienação e controle alguma vez criada. É de tal forma eficiente que são as pessoas se disponibilizam para serem objectos de controle.
A Inteligência Artificial foi criada para responder às nossas necessidades narcísicas, satisfazendo dessa forma o nosso individualismo crescente, fruto desta sociedade de início de milénio. Algoritmos capazes de prever as nossas reacções ajudam-nos a criar laços confortáveis, com respostas de satisfação imediata e sem qualquer tipo de contraditório. É um assistente que nos compreende e nos valoriza. Conformamo-nos com a atenção que nos é dada por uma máquina e, em contrapartida, cedemos-lhe o que de mais íntimo temos, a nossa individualidade, sem nos questionarmos ou preocuparmos com o destino final desses dados.
O novo processo de controle já está em marcha, e tudo leva a crer que estamos prontos para o aceitar e assumir como parte integrante da nossa construída, frenética e ansiosa existência. Marisa canta que “é a vida que segue e não espera pela gente” e ninguém quer ficar fora dessa vida, porque cada vez menos gente tem a capacidade de criar a sua.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Manual Cinema - Teatro e Cinema em Tempo Real


A companhia americana “Manual Cinema” apresentou-se pela primeira vez em Portugal com o seu mais recente espetáculo, “Ada/Ava”, nos dias 18, 19 e 20 de Maio no teatro São Luiz.
      O grupo com sede em Chicago cria uma metamorfose entre o cinema e o teatro, num espetáculo ao vivo onde a narrativa é dada pela silhueta dos atores bem como pela animação instantânea criada pelos restantes membros do casting, através da projeção de  marionetas e cenários 2D.  Em cada espetáculo é comum a utilização de técnicas como a projeção de marionetas, cenários e sombras através de múltiplos retroprojetores e a encenação através das silhuetas dos atores a serem filmadas por detrás de um pano de fundo branco. Nesse pano de fundo branco são projetadas todas as componentes visuais do espetáculo que vão criar uma espécie de cinema de animação em tempo real, acompanhado de música ao vivo que atua em simultâneo com a narrativa.
     No seu mais recente espetáculo “Ada/Ava” , a companhia retrata a história de duas irmãs gémeas que vivem os ultimos momentos das suas vidas numa casa-farol. Com a morte de Ava, Ada irá passar por uma aventura que retrata assuntos como a identidade pessoal, a morte e a ressurreição numa atmosfera bastante triste e negra.
     Nos seus mais recentes espetáculos, o grupo realiza a encenação com sombras e o trabalho de retroprojetores ao olhar do próprio público no centro do palco, encimados por uma tela onde passa a animação que é criada em tempo real. No entanto, nos primeiros espetáculos o elenco permanecia atrás das cortinas a realizar todo o processo de encenação, o que causava a certos espetadores a incerteza de terem pago para verem a projeção de um filme de animação pós-produzido ou um espetáculo encenado na própria altura.
     Após cada espetáculo o grupo de atores, músicos e encenadores permite ao publico subir ao palco para ver de perto as marionetas, os adereços, os retroprojetores e para poder perceber todo o funcionamento do espetáculo. 



O Biopoder d’ A Ilha


    A Ilha, publicado em 1962, foi o último livro que Aldous Huxley publicou. De gênero ficção utópica, científica, retrata a sociedade perfeita aos olhos do autor como também o conceito de biopoder.

    Um jornalista, Will Farnaby, naufraga na ilha Pala, uma ilha regida por crenças assentes no hinduísmo e no budismo que atrai a inveja do mundo exterior. Novas tecnologias, novas educações e novas maneiras de viver estão presentes neste novo mundo e cabe a Will descobrir o que está errado na sociedade e no homem moderno.

    Michel Foucault defende que o biopoder não é focado no individuo em si mas sim em algo coletivo. Este é dividido entre anátomo-política do corpo e biopolítica da população: anátomo-política consiste nos dispositivos institucionais que permitem controlar o espaço e tempo, como as escolas, hospitais, as fábricas e as prisões; a biopolítica da população volta-se à regulação das massas, utilizando práticas que permitem gerir taxas de natalidade, epidemias e aumento da longevidade. Foucault defende que para uma sociedade puder evoluir é necessário existir uma categoria de “sujeito” onde sejam exercidos uma nova forma de poder. O poder disciplinar nasce como uma máquina que transforma o corpo do homem para assim dar a possibilitação de ser um instrumento de interesse económico.

    Na obra de Huxley é procurada a perfeição através de diferentes formas de tecnologia e avanços tanto na mentalidade como na interação do ser humano. Pode-se, desta maneira, relacionar com a individualização do sujeito quando este é procurado pelas suas ações no meio em que está inserido. Por exemplo, no livro, a educação é bastante valorizada pois é esta que vão formar o caráter e molda a maneira como a pessoa se irá tonar no futuro, logo, educa-se para a liberdade e felicidade. A educação visa desenvolver a diversidade dos indivíduos de acordo com as potencialidades de cada um de modo a transformá-los em seres humanos desenvolvidos, livres e felizes. De uma maneira indireta, acaba por ser manipulado o pensamento para um bom funcionamento da sociedade e instala-se um “biopoder” para a política de vida.





"Hyper", hipermodernismo e bio-poder

Vou elaborar este trabalho, relacionando uma performance de dança contemporânea com os conceitos de biopoder (Foucault) e hipermodernismo (Lipovetsky).
A peça "Hyper", apresentada no Festival de Dança Contemporânea 2018, é baseada na obra "Os Tempos Hipermodernos" (2011) do sociólogo francês Gilles Lipovetsky (1944).
O hipermodernismo é nos apresentado como uma construção sociológica que procura refletir sobre uma época sem espaço para a descoberta e novas experiências, reinada por um ritmo frenético, onde tudo acontece quase simultaneamente. Nesta era impera a preocupação e incerteza sobre o futuro em que nos encontramos apegados à ideia de conservação e obececados pela passagem do tempo. Assim, vivemos de forma a precaver o amanhã, um amanhã onde poderemos finalmente usufruir de tudo o que não temos tempo para usufruir hoje.
Ora é também esta transformação do natural pelo cultural que define o bio-poder. De forma algo vaga, a forma de viver neste tempo hipermoderno é alterada pela obcessão pela consevação e a esperança de um amanhã melhor. Vivemos então inundados de maneiras de "durar mais tempo", constantemente estimulados por um ritmo incessante de stress e preocupação. Tudo para assegurar um futuro calmo, uma boa reforma, onde vamos viver verdadeiramente e onde depositamos todas as esperanças de felicidade. A nossa vida, em todos os aspetos, é alterada por estas regras sociais. Estudar certas áreas para arranjar um bom trabalho e conseguir fornecer para a família. Trabalhar muito para assegurar uma boa reforma. Ter filhos para ter alguém que cuide de nós, quando velhos. Dietas, exercíco fisíco e suplementos anti-oxidantes para viver mais uns anos. Vidas cheias de stress e nervos, tudo para um amanhã feliz, que raramente existe. Os nossos corpos são alterados por estas regras sociais. Mais ataques cardíacos do que em qualquer momento conhecido na história, mais doenças mentais relacionadas com stress (como ansiedades, depressão e sindromes compulssivos) e esgotamentos nervosos cada vez mais comuns. Estas "social boundaries" e "guidelines" para uma boa vida são, apenas, contruções sociais que nos fazem viver de maneira diferente, longe da nossa natureza. 
A criação coreográfica de Ana Francisca Almeida expressa, através de movimentos rápidos, quedas bruscas e saltos inesperados, uma tensão enorme proveniente desta forma de viver que nos destrói, aos poucos, parecendo impossível, no entanto, fugir dela. As quatro intérpretes dançam, com solos, duetos e em grupo, num estilo mais lírico de Merce Cunningham.

Laura Mulvey: Cinema e questões de género




   As relações de género, como as conhecemos atualmente, foram construídas através de ideias socioculturais que indicavam o que seria adequado aos homens e às mulheres. O género masculino e feminino é apenas uma forma de referir-se às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres respetivamente. Na era do cinema clássico de Hollywood, os espectadores foram sistematicamente encorajados a identificarem-se com os protagonistas, que eram e ainda são maioritariamente masculinos. Enquanto as personagens das mulheres de Hollywood tinham o propósito de "ser olhadas" enquanto o posicionamento da câmara e o espectador masculino constituíam o "portador do olhar".

Laura Mulvey, crítica cinematográfica e feminista britânica, utiliza a teoria da psicanálise como uma "arma política" para demonstrar como o subconsciente patriarcal da sociedade molda não só a nossa experiência cinematográfica como também o próprio cinema. Mulvey acredita que o texto cinematográfico é organizado de acordo com linhas que correspondem ao subconsciente cultural, sendo este, essencialmente patriarcal. Laura Mulvey argumenta que a popularidade dos filmes de Hollywood é determinada e reforçada por padrões sociais preexistentes que moldaram o assunto fascinado. O principal argumento de Mulvey em "Visual Pleasure and Narrative Cinema", baseia-se no facto de a maioria dos filmes de Hollywood usarem as mulheres para proporcionar uma experiência visual prazerosa para os homens. Ou seja, o filme narrativo estrutura o ponto de vista como masculino onde a mulher é sempre o objeto do olhar masculino, quer por meio da identificação produzida com o herói masculino quer pelo uso da câmara. Muitas vezes o cinema utilizou de imagens de carácter patriarcal, que por meio de artifícios tradicionais, depreciavam a imagem da mulher.


Mulvey utiliza alguns dos seus conceitos para argumentar que o cinema clássico inevitavelmente coloca o espectador numa posição de sujeito do género masculino, com a figura da mulher como o objeto de desejo sobre "o olhar masculino ". De facto, a perspetiva cinematográfica do espectador é quase sempre produzida através da suposição de que o observador é exclusivamente do género masculino. Laura Mulvey identifica dois métodos pelos quais o cinema de Hollywood transmite prazer ao espectador. Estes surgem através de diferentes mecanismos mentais, o primeiro envolve a objetivação da imagem e o segundo a identificação com a mesma, onde ambos os representam os desejos mentais do sujeito masculino. O ponto central da crítica cinematográfica feminista é o poder controlador do “olhar masculino” no cinema, esse olhar que tem como intuito marginalizar as mulheres, pelo silêncio ou pela ausência. Podemos observar alguns desses exemplos na coleção de filmes "007", inspirados na personagem fictícia "James Bond" criada pelo escritor e agente de inteligência britânico Ian Fleming. Alguns destes filmes rebaixam a figura feminina pela sua desvalorização em cena, desempenhando papéis irrelevantes sempre numa situação submissa às personagens masculinas. Nas capas e pósteres, as figuras femininas quando estão presentes, são colocadas num segundo plano em poses sexuais e frequentemente comparadas a objetos. Atualmente, a indústria cinematográfica tem progredindo na representação do sexo feminino, no entanto ainda existe um longo caminho a percorrer para erradicar por completo a perspetiva extremamente machista do cinema.







Uncursed. Portas que não abrem.


    Uncursed é uma instalação de portas que dão para lado nenhum, dispostas de forma mais surrealista que aleatória. Esta obra de Yoko Ono parte do experimentalismo da sua intervenção premiada na trienal de Hiroshima. Nascida em 2011, ainda perturba. Nove portas impossíveis de abrir, mas que a artista declarou terem de ser transpostas. Nove portas dispostas de forma aparentemente caótica, algumas caídas ou dando passagem para um mundo subterrâneo. Yoko Ono inspira-se na maldição do Japão, que em menos de um século sofre dois desastres nucleares - em Hiroshima e em Fukushima. 

   As portas, jura a artista, representam a travessia que os indivíduos (ou o país) têm que fazer na peregrinação para expurgar os mil monstros da caixa de pandora que se abriu no Japão, no século passado. Obstáculos que nos impedem de avançar, os cabos Bojadores que temos que ultrapassar para exorcisarmos as pragas que nos perseguem.






   Jura a artista. A mesma que a cultura condenara à sombra de John Lennon, que a descreve como "a artista desconhecida mais famosa do mundo" ("the world’s most famous unknown artist") tentando, sem sucesso, que os milhões que a viam olhassem para ela.

    A cultura do século passado fez com Yoko Ono o que um ilusionista, na sua câmara-escura, faz com a sua magia: cega-nos com truques que escondem os verdadeiros truques. Vista e invisível, reduzida ao título de "mulher do John Lennon" perante os olhos do público consumista, Yoko Ono foi de forma automática posta num pódio, iluminada pelos holofotes que apontavam para Lennon e a deixaram na sombra. Não se trata da simples ilusão dos sentidos tão bem descrita na Alegoria da Caverna, mas da ilusão da valoração imposta pela ideologia cultural, que busca sóis que encandeiam e não deixam ver estrelas. Este apagão é tão óbvio que Yoko Ono até surge como um capítulo no índice da página Wikipédia de John Lennon.

   “Uncursed"? Infelizmente, talvez só após a morte do músico.

  Yoko Ono leva décadas a ser vista e aceite como a personalidade sui generis que é, e a começar a ser reconhecida pela sua arte. Em 2011, quando Hiroshima e Nova York se rendem à sua obra e a premeiam, Yoko Ono presenteia-nos com o labirinto de portas fechadas que ela própria teve de transpôr.

    É o exemplo acabado da filosofia da caixa-preta de Vilém Flusser, uma vez que Ono recusa-se a utilizar as portas para o seu propósito comercial. São portas que fisicamente não nos levam a lado nenhum, que não abrem nem fecham, que não separam dois espaços físicos distintos. É o não usar os elementos como funcionário servil, mas sim como artista, transformando os elementos num objeto artístico, antitético do previsto.


   

     Yoko Ono escreve na parede da sua instalação “I am uncursed” - “já não estou amaldiçoada”, que remete para a purificação do Japão, mas mais parece uma libertação dela própria. 
  Ela que deixa, também, de estar amaldiçoada pela cultura, que anteriormente a deixava na sombra de John Lennon.


Wonder Woman

Não é segredo nenhum que a presença feminina em diversos media é objetivamente inferior à presença masculina. Sendo o cinema um dos meios mais populares e visuais deste género, é inevitável nos apercebermos mais rapidamente deste facto perante esta categoria do que em outras. Mas, apesar do reconhecimento deste facto, ficaríamos surpresos perante a quantidade diminuta de objetos de consumo que passam o teste Bechdel. Restringindo agora o tema para o cinema, muitos filmes a sofrerem destes problemas são filmes de ação e, para limitar ainda mais a categoria de forma a ser mais fácil o leitor reconhecer a intenção deste texto, é necessário a adição de uma subcategoria - filmes de super-heróis - pois a categoria de ação é muito vasta em si mesma. Poucas personagens nestes filmes são do género feminino, mas as que são tendem a sofrer com os problemas abaixo descritos.

Laura Mulvey, no seu texto visual pleasures, comenta pontos interessantes que podem ser aplicados a vários filmes deste género. “A imagem reconhecida é concebida como o corpo refletido do eu, mas o seu pseudo reconhecimento como eu superior projeta este corpo para fora de si, como um ego-ideal, um sujeito alienado que, re-introjetado como um ideal de ego, á origem ao futuro gerar de identificações com outros. (...) O determinante observar masculino projeta a sua fantasia sobre a figura feminina, que é preparada em conformidade. No seu papel tradicionalmente exibicionista as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, e a sua aparência é codificada para o impacte visual e erótico.”

Fácil seria dar exemplos de filmes que promovem esta imagem de que Mulvey tanto fala. Mas para este texto queria dar o exemplo de uma longa metragem que foge dos parâmetros habituais: Wonder Woman. Não é o primeiro filme de super heróis com uma protagonista feminina, mas sim o primeiro considerado blockbuster e realizado por uma mulher. E tendo conhecimento deste contexto, muito pode ser dito sobre como o filme retrata as suas personagens. Pode ser argumentado que a figura de modelo de Gal Gadot cria expetativas elevada de um “corpo refletido do eu” mas não é de todo intencional e não serve como “exemplo” para o que uma rapariga heroica se deve parecer. De acordo com a narrativa faz todo o sentido a personagem ter a forma atlética que tem e a câmara faz um bom trabalho a não distrair a audiência com ângulos sedutores do corpo da atriz. Se o filme fosse dirigido por um individuo do sexo oposto a probabilidade de haver slow motion de uma pose sexual seria muito mais elevada. O filme e, por extensão, a personagem não sofrem com o “determinante observar masculino” pois trata-se de um filme sobre uma mulher realizado por uma mulher. Não existe em mente “o que atrairia um homem a ver este filme?” mas sim “o que atrairia uma mulher”. Não é um filme nascido de um desejo de fazer a audiência masculina identificar-se mas sim para outra audiência muito menos estimada, embora ambas possam apreciar, ou não, o resultado.

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Sexualidade de Foucault

Segundo Foucault, a sexualidade está na maioria das vezes ligada à sua própria repressão.

A sexualidade é um assunto reprimido que segue a regra da “Interditação, Inexistência, Mutismo”, isto é, não há nada a dizer, ver ou saber. Apresentando-se como tabu perante a sociedade, contudo tem existido uma melhoria nesta sua repressão.

O autor questiona esta hipótese repressiva, assim revela que o sexo começa a tornar-se uma forma de representar a verdade do específico fixando-se numa prática relacionada com o poder e o saber e não como uma “Ironia do dispositivo da sexualidade”. Como tal, a verdade revela-se uma forma de libertação de poder.

Questiona também a interditação do sexo no contexto moderno, não pondo de parte que este tenha sido altamente reprimido no passado. Procura então estudar os discursos com as matérias em questão, procurando falar libertamente.

O caso de uma confissão religiosa, em que não há a existência de opressão ou repressão, é evidente que existe uma liberdade para expor a verdade por exemplo em relação ao sexo.

O estudo de Foucault é precisamente avaliar as formas de transmitir essa realidade (se devemos detalhar a ação ou não).

Atualmente, sobre os nossos próprios desejos sexuais já não se trata de algo dado como proibido, mas sim como um sinal de confiança para com os outros, já não existe propriamente um julgamento por parte das pessoas ou mesmo uma “descida” de estatuto como existia em toda a burguesia. Trata-se de algo da nossa sociedade moderna.

Obviamente que devido às práticas (por exemplo: cristãs) continuam a haver repressões e opressões em toda a questão sexual.

O sexo, hoje em dia, é visto como algo natural ligado à natalidade e à fecundidade, mas também ao prazer transmitido aos indivíduos.

Foucault evidencia também que a sexualidade não deve ser transmitida como algo de carater perigoso devido ao seu conteúdo. Deve ser evidenciado que ao falar do sexo garantimos uma própria coerência, estabilidade e sensibilidade para com o próprio feito.

Assim acaba por afirmar uma logofobia na nossa sociedade cujas revelações mostram-se como algo de terrível , de tal violência e de algo incontrolável no seu próprio discurso.

Finalmente, o autor revela que existem alguns instrumentos que atuam no discurso em que por exemplo existe tudo aquilo que é restringido, ou seja, há uma toda separação, um tudo que fica ali dito. Tornam-se assim palavras de um louco.

Também há uma relação em distinguir aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso, o saber aqui é valorizado, distribuído e também por fim atribuído.



domingo, 27 de maio de 2018

The Raincoats


The Raincoats é o nome do grupo punk liderado por Gina Birch e a portuguesa Ana da Silva, formado em 1977 em Londres enquanto ambas estudavam em Hornsey College of Art. Nenhuma das duas sabia propriamente tocar um instrumento mas assim como a mentalidade “d.i.y” (do it yourself) que se viva nesta era punk dos 70’s em londres, este factor não era uma barreira que as impedisse de fazer algo relevante para elas, e que viria a ser relevante para milhares de pessoas. Em 1979 lançam o seu primeiro álbum juntamente com Vicky Aspinall, violinista prolífica que encontra na porta de uma biblioteca um anúncio no qual se lê “female musician wanted: strentgh not style”. Na bateria juntou-se Paloma Romero, mais conhecida por Palmolive, baterista da primeira banda punk constituída apenas por raparigas, as famosas Slits, depois de ser expulsa por não conseguir manter o ritmo, o que não era um problema para o seu novo grupo.
As Raincoats são em 1979 a primeira banda a intitular-se activamente feminista, o que não se manifesta diretamente na maioria das letras das suas musicas mas indentifica-se por exemplo na famosa versão do tema “Lola” dos Kinks, uma canção de amor sobre uma mulher escrita do ponto de vista de um homem, e agora atuada por uma mulher, algo muito estranho à sociedade daquela altura. O tema “Off Duty Trip” é talvez o único momento explicitamente político do grupo, este é uma reflexão sobre violação inspirada num acontecimento verídico que se deu naquela altura, quando um soldado violou uma rapariga num parque de noite e não foi castigado de forma nenhuma devido ao seu estatuto de exército e portanto o seu privilégio institucional. Um tema que até hoje em 2017 soa tristemente familiar.
Cerca de 40 anos depois de se juntarem as Raincoats tocam um concerto em Lisboa no dia 30 de junho no encerramento do Festival Rama Em Flor (festival comunitário feminista queer), e inspiram até hoje milhares a fazerem aquilo em que acreditam apesar do seu género ou qualquer outra barreira imposta assim que nascemos.