Cresci numa época de sentimentos misturados. A apreensão que as evoluções
tecnológicas nos traziam contrastava com a perspectiva de um mundo maravilhoso
que se manifestava e adivinhava na nossa frente.
Em 1984, a Apple apresentou no intervalo do Super Bowl o que é considerado ainda hoje o melhor filme
publicitário de sempre, para o lançamento da sua gama Macintosh.
Aproveitando uma narrativa semelhante ao então muito falado livro de
George Orwell Nineteen Eighty-Four, publicado
35 anos antes, a Apple conseguiu através desse filme, com uma estética que
muito lembra Metropolis de Fritz
Lang, traduzir o sentimento existente de desconfiança na tecnologia. A solução
para inflectir esse mais que provável futuro autoritário de dominação da
humanidade era transferir o poder para o individuo, libertando-o do jugo
dominador do Estado e das grandes corporações. A Apple apresentava a solução salvadora
desse destino quase certo, sob a forma do primeiro personal computer, o Macintosh!
Não creio que em 1984 eu soubesse o que era um Macintosh ou qual a importância que o conceito de personal computer teria no meu futuro.
Lembro-me de discussões esperançadas de que um dia o trabalho monótono e
repetitivo viria a ser executado pelas máquinas, ficando para os humanos
tarefas mais plenas de satisfação e criatividade pelo que teriam mais tempo
para desfrutar a vida e valorizar a sua existência. Num mundo polarizado, com
uma Guerra Fria que parecia não ter fim à vista, esta era mais uma esperança num
futuro melhor, mais justo e harmonioso para todos.
Revi todos estes pensamentos enquanto assistia à série do Netflix, Manhunt: Unabomber.
De forma perturbadora consegui entender a razão do manifesto Industrial Society and its future, publicado
pelo matemático, anarco ambientalista e terrorista norte americano Ted
Kaczynski, mais conhecido como o Unabomber. Nele justifica os seus meios
extremos de actuação como necessários para combater a perda de liberdade e
dignidade humanas, resultado da utilização perversa das tecnologias modernas,
transformando-nos em escravos, meros produtos de uma engrenagem social. A sua
solução passava, entre outras coisas, pelo regresso a um estado primordial de
conhecimento e existência, na tentativa de voltarmos a uma harmonia com a
Natureza, que ele acreditava estar a ser abusivamente destruída, colocando em
causa a sobrevivência de todos, incluindo das restantes espécies do planeta.
Os alvos dos seus ataques foram pessoas que de alguma forma
representavam ou estavam ligadas, à investigação tecnológica, a grandes e
poderosas corporações, assim como a responsáveis pela destruição do meio
ambiente. Kaczynski foi acusado de matar
três pessoas, e ter ferido outras 23, em vários ataques com correspondências
armadilhadas entre os anos de 1978 e 1995, tendo sido preso em Abril de 1996
após a mais longa e cara investigação do FBI.
Mais de vinte anos passaram desde que o Unabomber Manifesto, como ficou conhecido, foi divulgado. O seu
autor continua um activista, revelando que o caminho que o mundo seguiu é muito
próximo daquele por si preconizado. Considera-se um preso político, que o Estado
Norte Americano censura através da clausura, e não um preso de delito comum.
Trinta e quatro anos após o lançamento do primeiro personal computer, o mundo é um lugar completamente diferente. Do
que foi sonhado apenas o desenvolvimento tecnológico se cumpriu, não como um
bem que libertou a humanidade, mas antes como uma ferramenta que tem como
finalidade exercer controlo e poder. Novas formas e novas categorias de
escravatura foram criadas, prendendo-nos ora por desejo, ora por obrigação, ora
por sobrevivência.
No final a alienação é muito próxima da sociedade imaginada por Orwell sendo
o valor do ser humano cada vez mais quantificável e, por isso mesmo, relativo.
Trinta e quatro anos após a proposta da Apple de devolver o poder às
pessoas, é ela própria um dos Big Brother
que nos aprisiona numa gaiola dourada, tudo vendo, tudo controlando e tudo
manipulando para o seu próprio proveito.