“Trabalho em teatro desde 14 de fevereiro de 1978, mas esta é a primeira
vez que estou num palco. Sempre trabalhei na sombra. Agora que me podem ver
pela primeira vez, certamente conseguem reparar como sou pálida. A minha pele
não está habituada às luzes. O meu corpo, o meu rosto e o meu andar não são o
corpo, o rosto e o andar de quem vive sob as luzes. A minha roupa negra é roupa
de quem quer ser confundida com a sombra. Visto-me para ser invisível na
escuridão. Não sou feita para ser vista. Mas hoje estou em palco, sob as luzes,
à vista de todos. Hoje corro o risco de perder a minha amada palidez.”
Sopro, Cena 1, Cristina
Vidal
“É
o principio de uma ideia porque ainda não estava desenvolvida, mas era mais do
que isso, porque já abrira caminha amplos: a questão da respiração do teatro,
os seus pulmões e consciência, do ponto com o centro neurológico, nervoso,
emocional e muitas vezes moral do edifício.”1
Tiago Rodrigues procura
com o sopro a personificação do teatro, teatro como edifício, espaço físico,
como entidade que vive, respira, tem consciência própria, e da importância do
Ponto, como centro neurológico, nervoso, emocional e centro moral do edifício.
O edifício vive, respira,
pensa e age através do Ponto. Sem o Ponto o teatro morre, está em ruínas, e é
através do Ponto que conseguimos ter a real perceção do teatro.
Tiago diz que a memória do
teatro não é exclusiva do Ponto, mas este tem uma posição lateral, mas total,
uma ligação pessoal e íntima com a função dos atores, a representação.
O Ponto
é a “como
a mão do dentro do fantoche”2 que lhe dá vida. “A
figura do Ponto, contêm dentro de si, não só a história do teatro como
edifício, mas também a essência do gesto dramático, porque ele antecede a
estética, a forma, o seu trabalho é subterrâneo. Garante a memória do
significado radical das palavras originais e a proteção da existência do texto
que antecede o seu significado.”3
É centrado no papel do
Ponto como os pulmões do teatro que a peça começa a desenvolver-se. São esses
pulmões que dão alma ao edifício, e através deles, da Ponto, o Sopro,
Tiago Rodrigues dirige uma peça sobre peças, com atores que representam
atores que representam personagens. Um texto que é uma soma de textos, atores
que são personagens, e personagens que ultrapassam os atores.
Tudo isto contado pelos
pulmões que fazem respirar o teatro, a mão que guia o texto, confortavelmente
dentro do fantoche de pano, sem que ninguém a possa ver, mas que ela tudo vê,
tudo sabe e tudo sente.
A Ponto também serve para Tiago Rodrigues, como a
evocação do teatro como local de trabalho de várias pessoas, da máquina que tem
de estar bem oleada para funcionar, e que sem essas pessoas não existe, não é
possível.
A peça parece um relato
histórico dos anos de trabalho de Cristina Vidal, a nossa Ponto, mas na
realidade é a distorção de histórias vividas por ela, é uma ficção baseada na
distorção da história do teatro.
Mas essas histórias, ou melhor, o texto reescrito dessas
histórias é contando pela Cristina Vidal como ponto, ela vai soprando as suas
histórias aos atores.
Aqui é que está o fascínio
do Sopro, ser uma peça de teatro
onde a personagem, de que todos os atores deveriam ter vergonha de recorrer,
pois porque tal só acontece quando se esquecem do texto, toma o papel de
personagem principal na peça.
Ela na realidade é a atriz
principal, o seu nome seria cabeça de cartaz, mas ela representa fazendo-o da
maneira como sempre trabalhou a vida toda, soprando o seu texto aos ouvidos dos
atores. Eles, nesta peça são os fantoches que somente dão o seu corpo para
serem animados, é lhes dado animo, aqui na verdadeira concepção do termo em latim
ANIMUS, dar alma, coragem, desejo ou mente.
Numa possível análise da
estrutura da peça, pode-se concluir que esta está composta por várias histórias,
várias perspetivas e significados, tendo todos um elo de ligação, a Ponto,
Cristina Vidal. Em o Sopro, Tiago Rodrigues constrói uma narrativa, que ter
histórias dentro de histórias, conduz o espetador por uma sequência de cenas
que o fazem compreender o teatro através dos olhos, melhor do sopro, das
palavras da Ponto.
Em o Sopro, deslocando a
análise da Michel Foucault de Las Meninas de Velásquez, para a estrutura da
peça, esta também levanta questões sobre a perceção do que é verdade ou do que
é representação teatral. Vai ao longo do tempo recolocando o espetador em espaços
e momentos diferentes. Constrói uma relação entre a peça, a Ponto e o
espetador, tudo isto através dos textos dos atores. No inicio de o Sopro, somos
transportados para uma conversa onde o diretor atual (Tiago Rodrigues) conversa
com a Ponto (Cristina Vidal) sobre uma peça que ele quer escrever com ela.
Cena 3
Diretor:
“Viver na
fronteira. Viver no lugar de passagem. Viver entre os bastidores e o palco.
Viver na ponte que liga a margem da realidade à margem da ficção. Saber
mergulhar no leito do rio que corre entres essas duas margens. Saber nadar na
corrente das palavras que separa o mundo do palco…. Aguardar pelo acidente, o
erro que nos relembra que o teatro faz parte do mundo…quando o ator se relembra
que é imortal, que não é a personagem perfeita mas um corpo emprestado e
falho…saber salvá-lo com palavras, soprar-lhe ao ouvido”…”E hoje, porque a
realidade nos afoga, porque a vida inundou as margens da ficção, é isto que
temos de mostrar: o momento em que o salva-vidas mergulha nas águas do
rio…Escrever a história do acidente, a história do salva-vidas durante o
acidente…”
Cena 4
Diretor:
“…Ela
passa os dias naquele antigo teatro vazio como se fosse a memória ou o coração
ou os pulmões do teatro.”
Ponto:
“…custa-me
muito imaginar este teatro em ruínas. Não é só por ter trabalhado aqui a vida
toda. É que este é o primeiro teatro que alguma vez entrei.
Tinha
cinco anos. A minha tia trabalhava cá, na bilheteira…um dia trouxe-me…”
Depois a ponto começa a
contar a sua história ao diretor, durante a conversa sobre a peça, deslocando o
espetador da mesa do café, para 1978, para certas peças que a marcaram, para
momentos da sua vida profissional, momentos da vida pessoal de uma antiga
diretora ou de atores.
Ponto:
“Ela
andava de um lado para o outro do palco, como os leopardos no jardim zoológico.
«Um leão não pode amansar um leopardo» Ricardo II primeira cena primeiro ato.”
“…a minha
tia já estava a levar-me para a bilheteira com ela quando vieram dizer-nos que
a Diretora autorizava que eu visse a peça, desde que ficasse escondida na caixa
do Ponto, para o público não me ver.”
“Vi a
minha primeira peça de teatro aos cinco anos, escondida na caixa do ponto…Com
as pontinhas dos dedos a tocar o palco. Assim. Com muito cuidado. Como se
tivesse medo de me queimar. A certa altura o ator teve uma branca” …” Nem era uma
frase, só uma série de sons colados uns aos outros. Era uma longa palavra sussurrada”
…” Mas quando falou o ator que fazia de Rei Henrique” …” aquela frase já queria
dizer qualquer coisa” …” Quando isso aconteceu, as pontinhas dos meus dedos
sentiram o palco a escaldar.”
“... mas
não gosto muito da ideai de contar a minha vida em palco. Eu sou a sombra,
estás a ver a minha pele? Não gosto de me mostrar. Nunca quis mostrar-me.
Estive sempre ali escondida. Na margem. Ou ali. Na outra margem” …” Somos uma
espécie em vias de extinção. E quando desaparecermos talvez ninguém dê conta…”
“…A minha
glória é ninguém saber que existo…”
“Era a
estreia do nosso Dinis e Isabel, do António Patrício, 5 de outubro de 1984…era
a Diretora que fazia de Isabel…”
“…e nesta
altura o Dinis devia fazer uma pausa e pensar, ela faz a pausa e pensa, mas a
pausa nunca mais acaba, parece-me que aquilo é pensamento a mais e lanço-lhe o
início da fala «Só a morte é real…», mas ele nada…e aqueles segundo que parecem
horas, dias, meses anos de silêncio a passar…talvez seja intencional, uma pausa
dramática, porque nas estreias é habitual os atores esticarem um bocado as
pausas…mas a diretora deitada na cama a fazer de Isabel morta exala um suspiro
de impaciência e eu sopro de novo”…”e o Dinis nada, e só então é que me lembro
de uma vez ele ter dito que era surdo de um ouvido…não tenho outra hipótese
senão falar mais alto e digo «Só a morte é real, e quando a vemos, tudo recua
em corredores de sonho…», ouve-se a minha voz até à ultima fila da plateia…”
“Nessa
noite quando chego ao beberete da estreia há um crítico de um jornal que começa
a aplaudir, nessa altura havia críticos nos jornais…e diz «Parabéns à Ponto,
que esteve magnífica no início do quinto ato! Que voz! Que dicção!»”
“Percebes
que a única parte de mim que pertence ao palco é a pontinha dos dedos?”
Na cena 11, durante o
relato da sua história, a Ponto sopra o texto a um ator, ao qual ela dá o nome fictício
de Verchínin, a certa altura começa a contar ao espetador a vida do ator, e
este começa a repetir como se de uma peça de teatro se tratasse. Ao servir-se
de Verchínin como interlocutor entre o publico e a Ponto, desloca-nos para
dentro da peça.
Ponto
“E o
público ria sempre. Tanto quando ele acertava, como quando se enganava” …” Eu
chamo-lhe Verchínin porque ela era filho de latifundiários…”
Verchínin
”Eu
chamo-lhe Verchínin porque ele era filho de latifundiários…”
Ponto
“Mas
era a ovelha negra da família.”
Verchínin
“Mas era
a ovelha negra da família. Tinha-se medito no teatro para irritar o pai…”
Na cena 17, Tiago Rodrigues, através da memória da Ponto, conta um momento
da vida da antiga diretora. Nesta cena tem um momento muito particular, porque
nela os atores (Diretora e Verchínin) estão a representar um diálogo sobre uma
consulta médica que a diretora teve, à qual Verchínin não foi. No inicio o
texto poderá confundir o espetador e faze-lo entender que o ator que faz de
Verchínin está a representar o médico, mas na realidade trata-se de um “ensaio”,
uma recriação do momento da consulta numa conversa entre a Diretora e
Verchínin. Os atores estão a representar atores, que por si, estão a
representar um momento passado. Tudo isto, sempre, através do sopro da Ponto.
Verchínin
“As
notícias não são boas, mas há razões para manter a esperança”
Diretora
“E agora?
Tenho muitas hipóteses?”
Diretora
“Podes
repetir esta ultima frase, mas só um pouco menos honesto.”
Verchínin
“Menos
honesto?”
Diretora
“Menos
convicto, talvez.”
Verchínin
“Dás-me a
deixa?”
Num certo momento do texto, a Ponto intrometesse na conversa, como se
pudesse alterar o passado pelo poder que tem em sobrar o texto aos atores. A
diretora primeiro diz o texto tal como foi dito pela Sopro, mas depois vira-se
para ela e conversa com ela. Mais uma vez, através do texto, somo transportados
para outro momento fora da peça, para o momento da ficção pessoal da Ponto,
daquilo que ela queria dizer, mas não disse.
Ponto
Sim, por
favor fica, Verchínin
Diretora
Sim, por
favor fica Verchínin…
Virando-se
para a Ponto
A atriz
procura no texto a frase soprada
Diretora
Onde é
que isso está?
Não podes
fazer isso. Não podes mudar o texto. Podes recordar tudo, mas não podes
inventar. Não podes mudar o que está escrito. Não podes. Tu és a Ponto. Tu não
estavas lá. E se estavas lá estavas na sombra. Eu estava lá sobre as luzes. Eu
sei o que disse. Eu disse…
E no fim da peça a Ponto,
coloca-se no papel de atriz, diz um relato imaginário sobre o que teria sido se
ela tivesse agido num momento em que a diretora teve uma branca, a um momento
do passado imaginário da Ponto.
Ponto
“Estávamos
na última cena. A minha Diretora fazia a Berenice
E a Ponto
começa a interpretar a Diretora interpretando Berenice,
Muda o
texto quando chega ao Ponto onde a Diretora teve uma branca
Li na
página
Levai
longe de mim ferros, suspiros, zelo.
Mas,
quando ia soprar o verso seguinte, não saiu nada.
“Mandaram
fechar a cortina. O público aplaudiu, como se tudo estivesse normal” …” No dia
seguinte já não houve espetáculo. E é isto. Se alguma vez estivesse sozinha no
palco, se falasse diretamente com o público, terminava essa cena. Seria muito
breve. Apenas setes versos” …” Só aquilo que o público nunca chegou a ver…”
«Levai
longe de mim ferros, suspiros, zelo.
Adeus, ao
universo os três somos modelo
Do amor
que foi mais terno e foi mais infeliz
cuja
história de dor nele guarda se diz.
Esperam-me.
Aqui não vou- Não me sigais. Enfim,
(para
Tito) Senhor, mais uma vez, adeus pois.»
E depois
o Antíoco diria:
«Ai de
mim!»
1,
2 e 3 -
Excertos da entrevista de Tiago Rodrigues com Marion Canelas para o site do
Festival e disponível na integra em
4 - Martin Amis, Experience, 2001, Londres, ISBN-10:
0099285827
5 - Michel
Foucault, As Palavras e as Coisas – Uma
Arqueologia das Ciências Humanas, 1966, Edições 70, 2014, Lisboa, ISBN:
987-972-44-1810-0
Excertos da
peça retiradas de: Tiago Rodrigues, Como
Ela Morre – Sopro, 2017, Teatro Nacional D. Maria II, Bicho do Mato,
Lisboa, ISBN 978-989-8349-53-8
Fotografias
retiradas do site do 71º Festival de Teatro de Avignon, França