quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Female Trouble - recensão

Female Trouble conta de maneira detalhada a vida e carreira criminal de Dawn Davenport, desde os seus dias de delinquência juvenil até à sua apreensão final pelas forças da ordem e da lei e a sua subsequente morte na cadeira elétrica. Tudo começa com um par de “cha-cha heels” (sapatos de salto alto), que eram tudo o que Dawn, com 16 anos, queria no natal de 1960. “My parents better get me them cha-cha heels I asked for”. Naturalmente, os seus pais não lhe ofereceram os sapatos e a discussão acaba com Dawn a fugir de casa, numa cena icónica em que a sua mãe acaba debaixo da árvore de Natal e o seu pai a gritar “Nice girls dont wear cha-
cha heels!”.
Assim começa “Female Trouble”. Um épico filme de comédia e mau gosto de John Waters (referido também como “Príncipe do Vómito”, “Rei do Mau Gosto” ou o “Papa do lixo”) que conta de maneira detalhada a perturbadora a historia de vida criminal da obesa Dawn Davenport (representada por Divine – a falecida Drag Queen), desde os seus dias de delinquência juvenil até à sua apreensão final pelas forças da ordem e da lei e a sua subsequente morte na cadeira elétrica. A sua filha Taffy (representada de forma soberba por Mink Stole) é uma criança irritante que foi concebida num colchão nojento no meio do bosque com um homem, igualmente nojento, que se ofereceu para dar boleia a Dawn quando esta fugiu de casa aos 16 anos (sendo este representado também por Divine - numa das poucas vezes que a vemos representar enquanto homem). O casal Dasher (representado por Mary Vivian Pearce e David Lochary) representam os donos loucos de um salão de beleza e estão convencidos de que crime equivale a beleza. Estes tomam controlo da Dawn, fazendo dela a sua musa criminal e forçando-a a injetar-se com eyeliner líquido. Ida (representada por Edith Massey) é a vizinha obsessiva de Dawn, que quer que o seu sobrinho seja homossexual visto que “The world of heterosexual is a sick and boring life!” e atira ácido à cara de Dawn quando ela e o seu sobrinho se casam.

Female Trouble é um filme hilariante e chocante, nojento e perturbador, assim como qualquer filme de John Waters.
John Waters é um realizador e cineasta que é conhecido por chocar as suas audiências. Muitos dos seus filmes apresentam uma sátira da América suburbana assim como a muitas convenções sociais. Divine está presente em todos os seus filmes (normalmente fazendo o papel de mulher), sendo na minha opinião, a atriz perfeita para os filmes de John Waters, dando vida às suas visões perturbadoras como mais ninguém conseguiria. Divine foi a primeira estrela Drag Queen e, após o seu falecimento, continua a ser a Drag Queen mais icónica e irreverente de todos os tempos.

"Female Trouble" é um filme que me faz pensar. Faz-me pensar acerca do que é certo e errado e do que quer dizer "bom" e "mau" gosto. É um filme que mostra a loucura em querer ser famoso, a ilusão de que o crime é igual a beleza e o nojento como forma de arte. Será que uma mulher obesa a saltar num trampolhim e a esfregar-se em peixe é uma performance válida? Será que matar pessoas com uma pistola após saltar num trampolim e esfregar-se em peixe é arte? Bem, na mente perturbada de Dawn Davenport a resposta é SIM. Então calculo que isso queira dizer que a definição de arte é diferente para cada individuo, especialmente para uma mente perturbada para a qual o crime é belo, o nojento é arte e o mau gosto é o bom gosto.

Por fim, acho importante mostrar a minha parte favorita do filme, a última fala de Dawn Davenport enquanto vive os seus ultimos momentos na cadeira elétrica:
"I'd like to thank all the wonderful people that made this great moment in my life come true. My daughter Taffy, who died in order to further my career. My friends Chicklette and Concetta who should be here with me today. All the fans that died so fashionably and gallantly at my nightclub act. And especially all those wonderful people who were kind enough to read about me in the newspapers and watch me on the television news shows. Without all of you, my career could never have gotten this far. It is you that I burn for and it is you that I will die for! Please remember, I love every fucking one of you!"

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Sexo//Sexualidade//Género


A langue (língua) é o sistema da língua, isto é, o conjunto de todas as regras que determinam o emprego de sons, das formas e relações sintáticas necessárias para a produção dos significados. Já a parole (fala) é uma parcela concreta e individual da langue que é colocada em ação por um indivíduo em uma situação comunicativa. Sendo assim, a langue é condição necessária para a existência da parole.
A relação entre langue e parole feita por Saussure aplica-se a imensos exemplos, sendo um deles a relação entre “sexo” e “sexualidade”. Sexo e Sexualidade são dois termos que muitas vezes são confundidos entre si. “Sexo” é visto a partir de características anatómicas, biológicas e físicas enquanto a “sexualidade” diz respeito às práticas eróticas e sexuais entre os indivíduos, classificadas na nossa sociedade com termos como por exemplo “heterossexualidade”, “homossexualidade” e “bissexualidade”. Vale também mencionar e definir “género” sendo este algo constituído no plano das construções socioculturais, variando através da história e dos contextos regionais, etc.
Aos olhos da filósofa Judith Butler tanto o sexo biológico como o género são matéria para teoria social.  O trabalho incrível desta autora ajuda-nos a perceber de maneira clara a relação entre sexo, género e desejo sexual (sexualidade). O binarismo de género (masculino/feminino) não dá conta da complexidade da realidade, no entanto espera-se que um individuo com um pénis seja um homem e que por consequência sinta atração por mulheres. Esta ideia é errada, existindo um leque enorme de identificação de género e de sexualidades.

Um tema pelo qual sou apaixonada e pelo qual me interesso imenso é o movimento Drag. Drag é uma forma de entretinimento em que pessoas se vestem e fazem performance (normalmente de formas extravagantes). Hoje em dia os artistas drag mais influentes identificam-se como homens e apresentam-se enquanto mulheres, chamam-se “Drag Queens”. A maior parte das Drag Queens vivem a sua vida enquanto homens (fora da sua personificação drag) no entanto, uma pessoa de qualquer género pode ser uma Drag Queen. Também existem os Drag Kings, sendo estes normalmente mulheres. Estas manifestações são feitas a partir da criação de toda uma nova pessoa com um nome diferente, um estilo específico e pode ser tratada com pronomes diferentes. No entanto, nada disto não quer dizer que pessoas Drag sejam transgénero! Assim como atores, os artistas Drag não permanecem necessariamente com o seu nome ou pronome que usam para as performances. Os artistas Drag são entertainers, portanto estar em drag não é uma parte integral da sua identidade da mesma forma que o seu género.
Por outro lado, quando uma pessoa transgénero se assume e pede às pessoas para usarem outro nome e outros pronomes de género para se referirem a ela, não faz parte de uma performance. É uma parte importante da sua identidade e é (ou pode ser) uma parte crítica da afirmação da sua identidade de género.
Um programa que se tornou mainstream mas que ajudou imenso na descoberta de drag Queens e na sua compreensão é “Rupauls Drag Race” no qual as Queens competem pelo título da nova estrela Drag da América. Apesar de ser uma competição ao estilo de “reality show”, esta representa tamanha importância no mundo LGBT. Para além de fazer com que esta forma de arte, que é ser Drag, seja celebrada, faz-nos também conhecer algumas personalidades e casos muito interessantes e inspiradores. A drag Queen Peppermint competiu na temporada 9 deste programa e foi a primeira Queen que competiu enquanto mulher transgénero assumida. Este é o exemplo perfeito para terminar o meu comentário. A Peppermint nasceu com um sexo biológico (homem), mas a sua identidade de género não correspondia com o seu sexo, identificava-se então com o género feminino, por isso mudou o seu nome, a maneira de se vestir, etc, sendo agora, uma mulher. No entanto, é também uma drag queen, enquanto mulher. O que nos faz perceber que não há regras para se ser um ser humano, visto que todos somos diferentes, todos estamos inseridos em contextos sociais diferentes e todos temos o direito de nos exprimirmos e sermos nós próprios.

Concluindo não assumam e respeitem as outras pessoas. Se não tiverem a certeza, por exempo de que pronomes utilizar quando se referem a alguém, perguntem, simplesmente perguntem.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Consumed by Consumerism – Fight Club

Bem-vindos a odisseia critica ao capitalismo, guiado pelo Fight Club que se trata de um filme critico ao modo de vida actual baseado no consumismo com a celebre frase: “Não temos uma grande guerra, nenhuma grande depressão¹ , a nossa grande guerra é uma guerra espiritual e a nossa grande depressão são as nossas vidas “. O filme faz várias referencias a profunda programação(manto ideológico) incutida na sociedade actual pelo consumismo capitalista, o facto de muitas vezes confundirmos o ter e o ser, ou seja, quanto mais tens mais és, criando barreiras(classes) entre humanos, o filme prossegue com a seguinte citação: “tu não és a quantia de dinheiro que tens no banco, não és o carro que conduz, não és o volume do teu bolso…as coisas que possuis acaba por possuir te”. 
Expondo também as grandes marcas da moda que aproveitam da baixa auto-estima das pessoas para lucros, ou seja , tentam criar um padrão de beleza sendo que a beleza é arbitrária a qualquer padrão.
Consumidos pela propaganda crescemos distraídos da realidade, presos em falsos conceitos (beleza, sucesso, felicidade) iludidos pela facilidade tornamo-nos fáceis de manipular com uma simples propaganda.

¹(A Grande Depressão, também conhecida como Crise de 1929-1939)

SOPRO OU SABER NADAR NA CORRENTE DAS PALAVRAS QUE SEPARA O MUNDO DO PALCO

“Trabalho em teatro desde 14 de fevereiro de 1978, mas esta é a primeira vez que estou num palco. Sempre trabalhei na sombra. Agora que me podem ver pela primeira vez, certamente conseguem reparar como sou pálida. A minha pele não está habituada às luzes. O meu corpo, o meu rosto e o meu andar não são o corpo, o rosto e o andar de quem vive sob as luzes. A minha roupa negra é roupa de quem quer ser confundida com a sombra. Visto-me para ser invisível na escuridão. Não sou feita para ser vista. Mas hoje estou em palco, sob as luzes, à vista de todos. Hoje corro o risco de perder a minha amada palidez.”

Sopro, Cena 1, Cristina Vidal
 “É o principio de uma ideia porque ainda não estava desenvolvida, mas era mais do que isso, porque já abrira caminha amplos: a questão da respiração do teatro, os seus pulmões e consciência, do ponto com o centro neurológico, nervoso, emocional e muitas vezes moral do edifício.”1
 Tiago Rodrigues procura com o sopro a personificação do teatro, teatro como edifício, espaço físico, como entidade que vive, respira, tem consciência própria, e da importância do Ponto, como centro neurológico, nervoso, emocional e centro moral do edifício.
O edifício vive, respira, pensa e age através do Ponto. Sem o Ponto o teatro morre, está em ruínas, e é através do Ponto que conseguimos ter a real perceção do teatro. 

Tiago diz que a memória do teatro não é exclusiva do Ponto, mas este tem uma posição lateral, mas total, uma ligação pessoal e íntima com a função dos atores, a representação. 

O Ponto é a “como a mão do dentro do fantoche”2 que lhe dá vida. “A figura do Ponto, contêm dentro de si, não só a história do teatro como edifício, mas também a essência do gesto dramático, porque ele antecede a estética, a forma, o seu trabalho é subterrâneo. Garante a memória do significado radical das palavras originais e a proteção da existência do texto que antecede o seu significado.”

É centrado no papel do Ponto como os pulmões do teatro que a peça começa a desenvolver-se. São esses pulmões que dão alma ao edifício, e através deles, da Ponto, o Sopro, Tiago Rodrigues dirige uma peça sobre peças, com atores que representam atores que representam personagens. Um texto que é uma soma de textos, atores que são personagens, e personagens que ultrapassam os atores.

Tudo isto contado pelos pulmões que fazem respirar o teatro, a mão que guia o texto, confortavelmente dentro do fantoche de pano, sem que ninguém a possa ver, mas que ela tudo vê, tudo sabe e tudo sente.
A Ponto também serve para Tiago Rodrigues, como a evocação do teatro como local de trabalho de várias pessoas, da máquina que tem de estar bem oleada para funcionar, e que sem essas pessoas não existe, não é possível.
A peça parece um relato histórico dos anos de trabalho de Cristina Vidal, a nossa Ponto, mas na realidade é a distorção de histórias vividas por ela, é uma ficção baseada na distorção da história do teatro. 










Mas essas histórias, ou melhor, o texto reescrito dessas histórias é contando pela Cristina Vidal como ponto, ela vai soprando as suas histórias aos atores.
Aqui é que está o fascínio do Sopro, ser uma peça de teatro onde a personagem, de que todos os atores deveriam ter vergonha de recorrer, pois porque tal só acontece quando se esquecem do texto, toma o papel de personagem principal na peça.
Ela na realidade é a atriz principal, o seu nome seria cabeça de cartaz, mas ela representa fazendo-o da maneira como sempre trabalhou a vida toda, soprando o seu texto aos ouvidos dos atores. Eles, nesta peça são os fantoches que somente dão o seu corpo para serem animados, é lhes dado animo, aqui na verdadeira concepção do termo em latim ANIMUS, dar alma, coragem, desejo ou mente.

Numa possível análise da estrutura da peça, pode-se concluir que esta está composta por várias histórias, várias perspetivas e significados, tendo todos um elo de ligação, a Ponto, Cristina Vidal. Em o Sopro, Tiago Rodrigues constrói uma narrativa, que ter histórias dentro de histórias, conduz o espetador por uma sequência de cenas que o fazem compreender o teatro através dos olhos, melhor do sopro, das palavras da Ponto.

Em o Sopro, deslocando a análise da Michel Foucault de Las Meninas de Velásquez, para a estrutura da peça, esta também levanta questões sobre a perceção do que é verdade ou do que é representação teatral. Vai ao longo do tempo recolocando o espetador em espaços e momentos diferentes. Constrói uma relação entre a peça, a Ponto e o espetador, tudo isto através dos textos dos atores. No inicio de o Sopro, somos transportados para uma conversa onde o diretor atual (Tiago Rodrigues) conversa com a Ponto (Cristina Vidal) sobre uma peça que ele quer escrever com ela.

Cena 3
Diretor:
“Viver na fronteira. Viver no lugar de passagem. Viver entre os bastidores e o palco. Viver na ponte que liga a margem da realidade à margem da ficção. Saber mergulhar no leito do rio que corre entres essas duas margens. Saber nadar na corrente das palavras que separa o mundo do palco…. Aguardar pelo acidente, o erro que nos relembra que o teatro faz parte do mundo…quando o ator se relembra que é imortal, que não é a personagem perfeita mas um corpo emprestado e falho…saber salvá-lo com palavras, soprar-lhe ao ouvido”…”E hoje, porque a realidade nos afoga, porque a vida inundou as margens da ficção, é isto que temos de mostrar: o momento em que o salva-vidas mergulha nas águas do rio…Escrever a história do acidente, a história do salva-vidas durante o acidente…”

Cena 4
Diretor:
“…Ela passa os dias naquele antigo teatro vazio como se fosse a memória ou o coração ou os pulmões do teatro.”
Ponto:
“…custa-me muito imaginar este teatro em ruínas. Não é só por ter trabalhado aqui a vida toda. É que este é o primeiro teatro que alguma vez entrei.
Tinha cinco anos. A minha tia trabalhava cá, na bilheteira…um dia trouxe-me…”

Depois a ponto começa a contar a sua história ao diretor, durante a conversa sobre a peça, deslocando o espetador da mesa do café, para 1978, para certas peças que a marcaram, para momentos da sua vida profissional, momentos da vida pessoal de uma antiga diretora ou de atores.

Ponto:
“Ela andava de um lado para o outro do palco, como os leopardos no jardim zoológico. «Um leão não pode amansar um leopardo» Ricardo II primeira cena primeiro ato.”
“…a minha tia já estava a levar-me para a bilheteira com ela quando vieram dizer-nos que a Diretora autorizava que eu visse a peça, desde que ficasse escondida na caixa do Ponto, para o público não me ver.”
“Vi a minha primeira peça de teatro aos cinco anos, escondida na caixa do ponto…Com as pontinhas dos dedos a tocar o palco. Assim. Com muito cuidado. Como se tivesse medo de me queimar. A certa altura o ator teve uma branca” …” Nem era uma frase, só uma série de sons colados uns aos outros. Era uma longa palavra sussurrada” …” Mas quando falou o ator que fazia de Rei Henrique” …” aquela frase já queria dizer qualquer coisa” …” Quando isso aconteceu, as pontinhas dos meus dedos sentiram o palco a escaldar.”
“... mas não gosto muito da ideai de contar a minha vida em palco. Eu sou a sombra, estás a ver a minha pele? Não gosto de me mostrar. Nunca quis mostrar-me. Estive sempre ali escondida. Na margem. Ou ali. Na outra margem” …” Somos uma espécie em vias de extinção. E quando desaparecermos talvez ninguém dê conta…”
“…A minha glória é ninguém saber que existo…”
“Era a estreia do nosso Dinis e Isabel, do António Patrício, 5 de outubro de 1984…era a Diretora que fazia de Isabel…”
“…e nesta altura o Dinis devia fazer uma pausa e pensar, ela faz a pausa e pensa, mas a pausa nunca mais acaba, parece-me que aquilo é pensamento a mais e lanço-lhe o início da fala «Só a morte é real…», mas ele nada…e aqueles segundo que parecem horas, dias, meses anos de silêncio a passar…talvez seja intencional, uma pausa dramática, porque nas estreias é habitual os atores esticarem um bocado as pausas…mas a diretora deitada na cama a fazer de Isabel morta exala um suspiro de impaciência e eu sopro de novo”…”e o Dinis nada, e só então é que me lembro de uma vez ele ter dito que era surdo de um ouvido…não tenho outra hipótese senão falar mais alto e digo «Só a morte é real, e quando a vemos, tudo recua em corredores de sonho…», ouve-se a minha voz até à ultima fila da plateia…”
“Nessa noite quando chego ao beberete da estreia há um crítico de um jornal que começa a aplaudir, nessa altura havia críticos nos jornais…e diz «Parabéns à Ponto, que esteve magnífica no início do quinto ato! Que voz! Que dicção!»”
“Percebes que a única parte de mim que pertence ao palco é a pontinha dos dedos?”

Na cena 11, durante o relato da sua história, a Ponto sopra o texto a um ator, ao qual ela dá o nome fictício de Verchínin, a certa altura começa a contar ao espetador a vida do ator, e este começa a repetir como se de uma peça de teatro se tratasse. Ao servir-se de Verchínin como interlocutor entre o publico e a Ponto, desloca-nos para dentro da peça.

Ponto
“E o público ria sempre. Tanto quando ele acertava, como quando se enganava” …” Eu chamo-lhe Verchínin porque ela era filho de latifundiários…”
Verchínin
”Eu chamo-lhe Verchínin porque ele era filho de latifundiários…”
Ponto
Mas era a ovelha negra da família.”
Verchínin
“Mas era a ovelha negra da família. Tinha-se medito no teatro para irritar o pai…”

Na cena 17, Tiago Rodrigues, através da memória da Ponto, conta um momento da vida da antiga diretora. Nesta cena tem um momento muito particular, porque nela os atores (Diretora e Verchínin) estão a representar um diálogo sobre uma consulta médica que a diretora teve, à qual Verchínin não foi. No inicio o texto poderá confundir o espetador e faze-lo entender que o ator que faz de Verchínin está a representar o médico, mas na realidade trata-se de um “ensaio”, uma recriação do momento da consulta numa conversa entre a Diretora e Verchínin. Os atores estão a representar atores, que por si, estão a representar um momento passado. Tudo isto, sempre, através do sopro da Ponto.

Verchínin
“As notícias não são boas, mas há razões para manter a esperança”
Diretora
“E agora? Tenho muitas hipóteses?”
Diretora
“Podes repetir esta ultima frase, mas só um pouco menos honesto.”
Verchínin
“Menos honesto?”
Diretora
“Menos convicto, talvez.”
Verchínin
“Dás-me a deixa?”

Num certo momento do texto, a Ponto intrometesse na conversa, como se pudesse alterar o passado pelo poder que tem em sobrar o texto aos atores. A diretora primeiro diz o texto tal como foi dito pela Sopro, mas depois vira-se para ela e conversa com ela. Mais uma vez, através do texto, somo transportados para outro momento fora da peça, para o momento da ficção pessoal da Ponto, daquilo que ela queria dizer, mas não disse.

Ponto
Sim, por favor fica, Verchínin
Diretora
Sim, por favor fica Verchínin…
Virando-se para a Ponto
A atriz procura no texto a frase soprada
Diretora
Onde é que isso está?
Não podes fazer isso. Não podes mudar o texto. Podes recordar tudo, mas não podes inventar. Não podes mudar o que está escrito. Não podes. Tu és a Ponto. Tu não estavas lá. E se estavas lá estavas na sombra. Eu estava lá sobre as luzes. Eu sei o que disse. Eu disse…

E no fim da peça a Ponto, coloca-se no papel de atriz, diz um relato imaginário sobre o que teria sido se ela tivesse agido num momento em que a diretora teve uma branca, a um momento do passado imaginário da Ponto.

Ponto
“Estávamos na última cena. A minha Diretora fazia a Berenice
E a Ponto começa a interpretar a Diretora interpretando Berenice,
Muda o texto quando chega ao Ponto onde a Diretora teve uma branca
Li na página
Levai longe de mim ferros, suspiros, zelo.
Mas, quando ia soprar o verso seguinte, não saiu nada.
“Mandaram fechar a cortina. O público aplaudiu, como se tudo estivesse normal” …” No dia seguinte já não houve espetáculo. E é isto. Se alguma vez estivesse sozinha no palco, se falasse diretamente com o público, terminava essa cena. Seria muito breve. Apenas setes versos” …” Só aquilo que o público nunca chegou a ver…”

«Levai longe de mim ferros, suspiros, zelo.
Adeus, ao universo os três somos modelo
Do amor que foi mais terno e foi mais infeliz
cuja história de dor nele guarda se diz.
Esperam-me. Aqui não vou- Não me sigais. Enfim,
(para Tito) Senhor, mais uma vez, adeus pois.»

E depois o Antíoco diria:
«Ai de mim!»

1, 2 e 3 - Excertos da entrevista de Tiago Rodrigues com Marion Canelas para o site do Festival e disponível na integra em

4 - Martin Amis, Experience, 2001, Londres, ISBN-10: 0099285827

5 - Michel Foucault, As Palavras e as Coisas – Uma Arqueologia das Ciências Humanas, 1966, Edições 70, 2014, Lisboa, ISBN: 987-972-44-1810-0

Excertos da peça retiradas de: Tiago Rodrigues, Como Ela Morre – Sopro, 2017, Teatro Nacional D. Maria II, Bicho do Mato, Lisboa, ISBN 978-989-8349-53-8

Fotografias retiradas do site do 71º Festival de Teatro de Avignon, França




domingo, 14 de janeiro de 2018





RESCENÇÃO
Exposição ‘’ESCHER’’ - 1 de Dezembro de 2017.

        Entre as demais viagens do ser, a exposição que Lisboa abriga desde 24 de Novembro, transporta-nos numa viagem peculiar. As portas da perceção são estimuladas pelo nosso próprio subconsciente – é como se de um convite se tratasse, por parte do ARTISTA.
        A litografia é o elemento chave da produção artística envolta nesta exposição, grande parte das obras expostas apresentavam esta técnica - entre cor e linha, a ilusão óptica produzida por estas é o que nos atrai e nos provoca a desmitifica-la, e quase que, a entrar na mesma. Remete-nos ao tal convite ao centro da utopia, ao mundo de Maurits Cornelis Escher.
        Durante a viagem, surge «BOND OF UNION», de 1956. O primeiro impacto é o interlaçar de duas faces – homem e mulher – que se traduzem em corpos interligados, introduzidos no espaço de matéria, de energia. É como se a verdadeira conexão, nos levasse a níveis estratosféricos de consciência e compreensão, das mentes dos que nos rodeiam.
«RELATIVITY», de 1953. Uma obra repleta de ilusionismo em que o artista aufere do posicionamento das escadas – na estrutura existem sete escadas distintas, em que cada uma pode ser utilizada pelo mesmo individuo desde que este se insira em dois níveis de realidade diferentes. A complexidade é envolvida por uma tridimensionalidade completamente dominada por Escher, em que através da litografia, detalha o mais detalhado pormenor.

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Esta última obra, misturada entre muitas outras ao longo da exposição, serviu de inspiração a uma das cenas do filme «INCEPTION», em que existe toda uma combinação entre perspetivas, arquitetura, espaço – de modo a criar um género de escadas infinitas.

                                             Penrose Stairs, cena do filme Inception.

         
         Escher é realmente um génio visionário, que pretende transformar perceções acordando o desconhecido, e fermentando a possibilidade.

Gabbeh-celebração do real e das coisas do mundo


Seleccionado para o festival de cannes de 1995, gabbeh marca um novo caminho no cinema iraniano. Este cinema, reconhecido na europa por Kiarostami, carrega consigo uma tenedencia para nos fecharmos sobre o realizador de “O Sabor da Cereja “. Numa europa autocentrada e pouco tolerante , a propensão é reduzir o “Outro”, o diferente ao pouco que conhecemos (muitas vezes construções nossas, como o caso desta visão do Orientalismo, baseada em ideias e mitos de que Edward Said fala) . Mas Mokhamalbaf e os seus filmes abrem-nos caminho para extender o nosso olhar sobre este cinema, este país e este universo tão diferente.
Gabbeh, na sua individualidade própria não deixa de partilhar uma expressão identitária com o cinema de Kiarostami. O desenrolar do filme acontece na simplicidade de momentos que tecem o fio dos acontecimentos (não numa lógica de acontecimentos que criam uma história)  Em Gabbeh não se conta uma história , mas celebra-se um modo de vida que contém em si uma e muitas histórias. Este filme assenta num estilo que não é documentário nem ficção- é uma amostra da realidade com subtracções e adições particulares. Gabbeh é um tipo específico de tapete feito pelos nómadas do irão. Estes tapetes têm desenhos que representam os pensamentos de quem os faz. O filme começa com uma imagem deste tapete e termina com a mesma imagem – representando o começo e retorno ao mesmo  - num tempo circular que não segue a linha contínua e evolutiva mas que se abre e ramifica em possibilidades e histórias que retornam ao mesmo lugar – e onde tudo permanece imóvel, assim, como é e está. O próprio filme é uma tapeçaria , um trabalho que contém vários fios que se relacionam e  formam  uma peça – e que só de longe se percebe os seus motivos .
O tapete representa uma cristalização do tempo e do espaço- criação que o tapete absorve e eterniza.
Makhmalbaf pretende “tecer” o seu filme com este sentido , sendo os “fios” que ele usa  momentos simples e pessoas que se cruzam e formam este todo. Não há razão para este cruzar de fios. Simplesmente esta junção cria historias que vendo à distancia ganham sentido. O nome da personagem principal também é Gabbeh – ela própria se dissolve no tapete, e este absorve os seus pensamentos.  Os momentos que esta jovem passa com dois membros mais velhos da tribo são uma lembrança da possibilidade de amor perdida no passado. Esta rapariga tem um pretendente que a segue de local em local pronto para a resgatar. Mas a proibição do pai  mantém-na agarrada ao medo e impedem-na de fugir. O admirador vai aparecendo do nada, nas montanhas e planaltos relembrando a angústia de um amor não concretizado. Ao fugirem finalmente um dia, o pai dela mata-os logo  confirmando esta impossibilidade de que já todos estavam cientes.
Mas é esta redençao Às coisas simples , o arriscar fugir porque sim, o não ter pretensões nem objectivos maiores que o filme expressa tao bem.
A sensibilidade do momento em que o professor demonstra aos alunos a distribuição das cores do mundo – uma autentica celebração da vida como ela é – visitando a pureza das cores das coisas : “o céu é azul e o sol é amarelo “ É um momento tão simples quanto o tecer de um tapete.



 
Na última cena do filme  há uma cena com o tapete com as cores e histórias dos dois amantes fugitivos. Momento cristalizado que marcam um não acontecimento (real no tapete ) perdido no tempo.





sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Synecdoche, New York (2008)

Synecdoque, New York, é a estreia como diretor de Charlie Kaufman, conhecido por filmes como o Ethernal Sunshine of the Spotless Mind, Adaptation e Being John Malkovich. Com este filme torna-se aparente a necessidade do realizador de fazer algo direcionado à audiência, que fosse interpretado unicamente por ela. Kaufman podia ter deixado algo que nos direcionasse para alguma interpretação concreta do filme, mas decidiu não o fazer. Charlie Kaufman dá-nos a oportunidade de experienciar estas realidades em primeira mão, sem qualquer amparo por parte dele. A perceção do filme depende do individuo em si, e não é o individuo que molda a sua perceção consoante a ideia pré-concebida. Aliás, a maneira como o filme é apresentado não dá margem para tirar conclusões literais. Tudo pode ser e pode não ser. Podem ser polares opostos e serem-no ao mesmo tempo.
Este é um filme que engrandece de cada vez que é visto, e se desprende em várias possibilidades não consideradas anteriormente.

“I wanted to try to create a way in my mind that you could see the same piece of film on different occasions and have different experiences with it. The audience relation to a movie doesn’t affect the movie, the movie is already set in stone. What you can offer people or at least what I’ve decided I’d like to offer people is an ability to watch this movie now and watch it in five years and have a different experience because you’re a different person”
-Charlie Kaufman

A soundtrack do filme, foi realizada pelo compositor Jon Brion, que esteve também envolvido noutros filmes de Kaufman, embora tenha escrito letras para as musicas para este filme em especifico. Como não podia deixar de mencionar, o nível de cuidado e atenção colocado nestes detalhes, que estão minuciosamente colocados na construção do filme, enquadram-se harmoniosamente nas várias cenas, conferindo-lhes o tom e o peso necessários dos temas abordados.

O filme constrói-se a partir de vários temas, que vão de encontro ao tema principal e o mais recorrente, o conceito de morte. Não é apenas a morte, é aquilo que ela implica e as consequências que ela traz; é morrer com remorso, sabendo que a nossa vida foi desperdiçada; é acerca de morrer sem que nunca fossemos realmente compreendidos; é morrer sem acabar o trabalho  simbólico de uma vida inteira.

O filme apresenta-se de uma forma brutalmente honesta sobre o tema em questão, e a aura depressiva é inegável e de certa forma inevitável. A honestidade implica isso. Caso contrário, o produto final não se fazia sentir de uma forma tão genuína. O objetivo do realizador não era fazer um filme depressivo, mas sim fazer o publico deparar-se de uma maneira direta com os temas debatidos. Este filme requer uma espécie de introspecção, não só dos personagens, como também da parte de quem o vê, enquanto sujeito.

A história passa-se na sua maioria em Nova York, o que não podia ser mais apropriado para este filme em particular. Devido à sobre povoação da cidade e também pela distância que é inevitavelmente criada entre os habitantes neste tipo de ambiente. O filme representa isto, metaforicamente através de paredes e janelas, metáforas que podemos encontrar ao longo do filme. O titulo no poster principal, em que cada letra está individualmente separada das outras por janelas é indicativo disto. Estão como confinadas às suas próprias perspectivas.

“There’s a place I long to be. A certain town that’s dear to me. Home to Mohawks and G.E. It’s called Schenectady.
I was born there and I’ll die there. My first home I hope to buy there. Have a kid ora t least try there. Sweet Schenectady.
And when I’m buried and I’m dead, upstate worms will eat my head.
For every person that you know, once they’ll say goodbye and go. Think we’ll see them soon, well no. You won’t see them again. But there’s always a last time that you see everyone. There’s always a never again.”

O filme começa com a filha do personagem principal, Olive, a cantar uma música acerca de Schnectady. Esta musica, foi a maneira de induzir o publico a um pensamento que vá de acordo com os temas abordados mais tarde no filme, para criar  uma espécie de ambiência por assim dizer. À medida que ela vai cantando a sua voz é afogada pelo som do rádio e torna-se progressivamente difícil de entender, até se tornar imperceptível. A música não está incluída no soundtrack do filme e o excerto em cima é uma estimativa daquilo que se pensa ter sido cantando por Olive.

Quanto à edição do filme, deparamo-nos com um degradé de cinzento, que nos dá acesso aos primeiros frames do filme. Isto está igualmente presente nos últimos frames do filme, que desaparecem vagarosamente num fundo da mesma cor, que nos dá acesso aos créditos. Isto acontece para sinalizar esta ideia de causa-efeito, que o principio se funde no o fim, e que são, no fundo, a mesma coisa. Isto é significativo, não só pelo facto da não existência, antes de nascer e depois de morrer, como também serve de metáfora ao facto de cada decisão que é tomada ao longo da vida é ultimamente decisiva do fim da mesma. “O principio funde-se no o fim.”

Schenectady, é uma cidade de Nova York, onde Caden, o personagem principal vive. O titulo do filme é na verdade, uma brincadeira entre o nome da cidade e “Synecdoche”. A palavra Synecdoche é uma figura de estilo em que uma parte é feita para representar um todo ou vice-versa. Esta definição é não só relevante para as ações tomadas pelos personagens, como para aquilo que o filme é em si. Quando um filme como este almeja a uma inspeção daquilo que é a vida e a experiência humana, enquanto ser vivo, aquilo que está a fazer é mostrar-nos personagens compartimentados e distintos que são criados para representar algo que é maior do que aquilo que representam à primeira vista. Estes personagens são feitos para refletir o todo da humanidade e ultimamente, a sua experiência e relação com os temas abordados. Este filme é em si mesmo, uma parte que representa um todo.



A primeira cena começa com a imagem de um rádio relógio, uma boa escolha sendo que a passagem do tempo é indispensável na mensagem que o filme transmite.
Debaixo deste, está o titulo do filme que nasce vagarosamente do nada para desaparecer abruptamente no exato frame em que o relógio muda de hora. O titulo é literalmente morto pelo tempo. A alusão a este tema é recorrente durante o filme. Não só o titulo representa a vida e a experiência enquanto ser humano desta, como simboliza o filme em si.

“You have struggled into existence, and are now slipping, silently out of it.”

No rádio ouve-se o ultimo parágrafo de um poema alemão chamado “Dia de Outono”. De seguida, um dialogo entre os locutores da rádio. – Goodness, that’s harsh isn’t it? Well, perhaps. But truthful. – O poema é, portanto, simbólico do filme, e o dialogo é simbólico de uma hipotética conversa entre espetador e realizador. Isto aponta para aquilo que Charlie Kaufman quer deste filme, que é ultimamente uma representação sincera da experiência humana.

O personagem principal desce as escadas e vemos a sua esposa Adele, a tossir. Esta é a primeira coisa que a vemos a fazer no filme. Perto do final do filme esta personagem morre de cancro do pulmão. “The end is built into the beginning”.

Apesar de estarem casados, pela aquilo que presumo ser à muito tempo, eles são polares opostos. Enquanto Caden é dominado por uma obsessão mórbida acerca da sua própria morte, Adele leva a sua vida pouco a sério, sem sequer se aperceber dos sintomas evidentes de uma doença da qual acaba por morrer.
Neste filme a arte é feita para simbolizar a vida de uma ou de outra maneira e estes personagens são ambos artistas.

(comparação entre as pinturas de Adele à esquerda e a peça de Caden à direita)

Ao longo do filme a peça de teatro de Caden engrandece utopicamente enquanto as pinturas de Adele se tornam exponencialmente mais pequenas, e tornam-se progressivamente mais contrastantes. É como se Charlie Kaufman apresentasse dois extremos de um espetro. Adele que vive despreocupada, mas que acaba por morrer de um problema que ignora anteriormente, ou Caden, que se envolve tão doentiamente nos seus próprios problemas, ao ponto de não conseguir viver de todo.
Ambos acabam por morrer eventualmente, e esta concretização tem algo de aterrorizador e profundamente belo ao mesmo tempo.

Ao avançar ligeiramente no filme Caden lê um jornal, que representa subtilmente aquilo em que o personagem está a pensar, recurso recorrente ao longo do filme, onde os media servem de portal para os pensamentos íntimos tanto dos personagens como do autor. Nesta parte do filme referência a doença e a morte é constante nos meios de comunicação que se encontram em plano de fundo.
Neste caso, o jornal, serve como uma introdução á obsessão que Caden tem com a morte. A sua paranoia constante é evidentemente contrastante com a expressão exausta de Adele ao ouvir Caden falar das suas preocupações.
O estado da relação entre os dois também se torna evidentemente decadente durante este segmento. Ambos se mostram despreocupados aos problemas que não lhes dizem respeito. Adele mostra-se indiferente ao sofrimento de Caden e Caden, por sua vez, mostra-se indiferente à noticia da rádio sobre as vitimas de um terramoto.


Enquanto isto acontece, o tempo passa irracionalmente depressa, informação oferecida subtilmente através de datas mencionadas nos media e em produtos consumidos pelos personagens. A cena passa-se de manhã, ao pequeno almoço e é apresentada como se tudo tivesse acontecido num só dia, no entanto dias passam à velocidade de segundos. O filme começa e é 2 de Setembro, na imagem do jornal acima estamos a 17 de Outubro, no entanto as cenas passam-se na “mesma manhã”. Isto é intencionalmente impossível, e evidência a ideia de rotina, na vida dos personagens, que se perdem no dia-a-dia e vão esquecendo informação progressivamente, até que as memórias se tornam num todo simplificado e menos minucioso que o original.

“There’s issues whit time passaging, very specific issues, that many people won’t see the first time they see the movie, in that sense of a dream like reality. Time moving in an irrational way.” 
-Charlie Kaufman

(invisible virus of thought)

A televisão mostra novamente naquilo em que Caden está a pensar. - “There is a secret something at play under the surface growing like an invisible virus of thought. But you’re being changed by it second by second.” – Este “vírus da reflexão” é simbólico da paranoia de Caden “Cotard”. Não é pura coincidência que o apelido de Caden dê nome a uma síndrome, na qual o individuo acredita, erradamente, que está morto ou que o seu corpo se putrefaz. Isto também explica a maneira como o filme apresenta informação ao publico. A maioria dos elementos estéticos de plano de fundo, dão a impressão de estarem descoordenados, em falta, ou fora do sitio, de uma maneira pouco natural, como a pintura de Adele inacabada no papel de parede da cozinha. Estas peculiaridades subtis e desconcertantes que se deixam perceber no inconsciente das audiências, resultam numa sensação de vazio e incerteza, como se alguma coisa estivesse permanentemente ausente.

(pintura inacabada de Adele, à direita)

Noutra cena Caden vai ao doutor, e reforçando mais uma vez a ideia de empatia pelo outro, estes dois personagens mostram-se completamente indiferentes ao sofrimento do homem que está em plano de fundo. Presume-se que estejam perto da época natalícia através das decorações e da musica que toca na rádio. O doutor diz a Caden para ir ao oftalmologista, mas Caden não percebe aquilo que ele diz, interpretando os seus problemas de acordo com os seus pensamentos obsessivos, de maneira a confirmá-los. Isto cria um subtil mini desentendimento na fala entre os dois personagens, que é recorrente de cada vez que Caden visita um médico.



(Caden e doutor, ao fundo vemos o homem, enquanto tem uma espécie de "ataque")

Mais tarde, Caden apresenta-se como realizador de teatro, num dos ensaios da peça pela qual é responsável. Fala com um dos atores, a fim de o inspirar para a cena e aquilo que ele diz, é extremamente relevante:

(“Try to keep in mind that a young person playing Willie Loman thinks he’s only pretending to be at he’s end of a life full of despair, but the tragedy is that we know that you, the young actor, will end up in this very place of desolation.”)

Não só o ator, parece não perceber aquilo que Caden quer dizer, aspeto que se enquadra com as falhas de comunicação recorrentes ao longo do filme, como aquilo que é citado se aplica perfeitamente ao filme em si. Estas “dificuldades” não se aplicam unicamente aos personagens, mas dizem respeito ao ser humano em si, e evidentemente, às pessoas que fazem parte do elenco da peça.

Noutra cena, vemos Hazel, outra personagem, a comprar uma casa. Esta é a primeira cena em que o aspeto irreal do filme sobe à tona e se torna literal. A ideia desta cena é mostrar que as decisões que tomamos na nossa vida estão firmemente ligadas e conduzem inevitavelmente ao fim das nossas vidas. É possível que isto seja uma homenagem a Tennesse Williams, escritor de teatro, que passo a citar:

(“We all live in a house on fire, no fire department to call; no way out, just the upstairs window to look out of while the fire burns the house down whit us trapped, locked in it”)

Mencionando o inicio do texto, acerca da soundtrack do filme, Adele vai de viagem para a Alemanha e leva Olive consigo. Caden fazia conta de ir, mas Adele pensa que lhes faria bem estarem afastados.
Aquilo que ela diz já em si tem imensa relevância para os temas do filme, no entanto a letra da musica que se ouve de fundo é o que nos dá a perceber o real significado desta cena.

“No one will ever love you for everything you are. And so you build up layers of deception and you leave out things to alter the perceptions”

Charlie Kaufman, fala do desejo universal de ser amado. Quando estes desejos são perseguidos, versões falsas do individuo são fabricadas de maneira a corresponder às expectativas do outro, na tentativa de ser amado. Mesmo que duas pessoas não sejam totalmente compatíveis, através destas farsas, podem chegar a uma compatibilidade falaciosa, que acaba por ser desmascarada com o tempo. Charlie Kaufman lamenta como as pessoas são mais compatíveis quanto menos se conhecem realmente umas ás outras. Isto é algo que todos nós experienciamos de uma maneira ou de outra. No final, Adele tenta confortar Caden com palavras que nem ela própria acredita serem verdade.



(pés da terapeuta, Madeline)

Caden volta para a terapia e explica à terapeuta que se sente sozinho e que tem medo de morrer. Enquanto isto, o ponto fulcral da imagem gira em torno do facto da terapeuta ter bolhas nos pés. Isto é recorrente de cada vez que vemos a personagem no filme. Por detrás de cada profissional está uma pessoa, com uma vida verdadeira com os seus próprios problemas. Caden espera receber algum tipo de sabedoria divina de uma pessoa que parece confiante e bem-sucedida, no entanto ela também é um ser humano que comete erros e que lida com as suas próprias dificuldades todos os dias.
Noutra sessão terapêutica, Madeline, a terapeuta, impinge-lhe um livro escrito por um menino de 4 anos, e conta a Caden que ele cometeu suicídio aos 5 anos. Caden pergunta-lhe por que é que ele se suicidou e Madelina corta-o a meio da pergunta e diz “Why did you?”; emenda rapidamente a situação dizendo “Why would you?”. Alguns teoristas acreditam que o filme simboliza uma espécie de purgatório e que caden está morto. Isto explicaria os contornos irrealistas que são apresentadas subtilmente ao longo do filme e a alusão à morte por parte dos media em certos casos – “you fell, then you died, maybe someone cried, but not your one time bride.” – Caden, tenta realmente cometer suicídio a meio do filme, portanto, podesse assumir que ele foi bem-sucedido e que a história se passa depois do alegado suicídio. Mais tarde ele é descrito como um homem que já está morto, mas é possível que ele esteja morto e vivo ao mesmo tempo. As regras neste universo são extremamente flexíveis e nem tudo é literal.
Mais tarde podemos ver um anuncio para este livro, na altura em que a peça de teatro se torna progressivamente mais complicada. Esta situação de contraste, deixa Caden um tanto desconcertado. Caden passa a sua vida a trabalhar num projeto que nunca vai ser reconhecido e uma criança de 4 anos publica um livro que transcende décadas. Quase todas as personagens com a qual se vê envolvido conseguiram algum tipo de reconhecimento pelo seu trabalho, seja Adele com a pintura, ou Madeline com os livros de autoajuda por exemplo.

A viagem de Adele tinha a duração inicial de um mês, no entanto quando Caden vai ao dentista depois da partida de Adele, e percebe-se que vários meses já passaram desde a sua partida. Caden liga a Adele e ela confunde-o com “Ellen”. Ele sofre uma espécie de ataque epiléptico e ao ligar para os médicos, o homem do outro lado da linha confunde o género de Caden – Ma’am? -.
Ellen, é na verdade, uma empregada contratada por Adele para lhe limpar o apartamento de Nova York, e cujo Caden acaba por representar na sua peça de teatro perto do final do filme.
No entanto, Ellen é uma personagem que não aparece no filme. A única Ellen que se sabe existir de facto é a que Caden finge ser enquanto limpa o apartamento. Caden escreve uma personagem para o seu teatro que nem sequer existe. A não ser que se considere a possibilidade da peça de teatro inaugurado antes do filme ter sequer começado, e nesse caso este filme era a representação dessa peça. Isto é meramente especulativo, mas num filme como este a exploração de ideias transversais é importante e deve ser celebrada. Isto pode ser verdade e falso ao mesmo tempo. Torna-se claro que o filme explora a ideia de que as nossas experiências de vida estão de tal forma ligadas que são ultimamente as mesmas, numa única narrativa.

(Caden Cotard, 2015)

Ser Ellen, permite a Caden contacto indireto com Adele, contacto este, que se deixa sentir simbolicamente. Quando Caden limpa o apartamento de Adele, “Something You Can´t Return To”, uma música do soundtrack, ouve-se no plano de fundo. É impossível para Caden estar próximo de Adele enquanto Caden, sendo que tem de o ser com recurso a outra entidade, neste caso a Ellen.
Há uma possibilidade de Ellen ser o que Caden sente que seria, caso não fizesse uso da mascara metafórica que carrega permanentemente com ele. No teatro da vida e no que toca à identidade, todos envergam mascaras de uma maneira ou de outra. A maneira como falamos, nos expressamos e a maneira como falamos está de acordo com aquilo que o nosso cérebro determinou como sendo a nossa identidade. A ideia daquilo que se considera como definição do eu, não passa de uma coletânea de rótulos que acabam por não definir a verdadeira essência daquilo que é uma pessoa. Na procura de caden pela sua verdadeira identidade, as características que o definiam anteriormente vão se desvanecendo progressivamente, uma a uma. Tudo aquilo que alguma vez definiu Caden está agora separado daquilo que ele é verdadeiramente, da sua arte, das suas relações, do seu nome, do seu género etc.

“As the world forgets you. As you recognize your transience. As you begin to lose your characteristics one by one.”

(Milicent Weems, no papel de Ellen Bascomb)

Milicent Weems é a única personagem do filme que representa Ellen, sem ser o Caden.
Num dos mais bonitos monólogos na historia do cinema, “Ellen” conta-nos que está presa num casamento insatisfatório, em que o marido a vê como um fardo.
Aprendemos que o sonho dela era ter uma filha com quem pudesse fazer piqueniques, como os que fazia com a mãe quando era mais nova. Nunca chegou a ter essa filha e ela e o marido estão destinados a envelhecer juntos, tornando-se mais distantes a cada dia que passa.
Caden é movido a lágrimas ao sentir a dor de alguém pela primeira vez no filme. As suas dores são em parte partilhadas com as de Ellen.
Olive está para morrer, e durante a visita de Caden, Olive menciona que não o consegue perdoar pelas alegadas práticas de sexo anal com o seu amante, Eric. Eric, está claro, o marido de Ellen. A linha que existia entre Caden e Ellen ficou de tal maneira desfocada que eles são essencialmente a mesma pessoa.

Caden lê o diário de Olive, desde que ela se foi embora, que continua à medida do tempo, como se ela estivesse lá. Numa dessas cenas podemos perceber que a sua voz se alterou e que lhe apareceu o período. Aquilo que leu, isentiva Caden a uma visita à Alemanha. Ele vê o nome de Olive num poster que viu na rua; usa isto para a encontrar, num dos seus espetáculos privados e ela, tem de facto, a mesma tatuagem floral que fez quando tinha dez anos. Esta tatuagem não vem por acaso e representa aquilo que penso ser, uma representação “daqueles que dão vida”.
Durante o filme a Olive é associada muitas vezes com a vida vegetal, e isto é porque Olive representa “a vida”, especialmente para Caden. O nome dela está associado a “Oliveira” um tipo de árvore. No inicio do filme aparece numa casa de banho com motivos vegetais, verdes, as fezes dela também são verdes (“it’s green, like plants”), citando. As roupas que ela veste têm ambas padrões florais.
A única personagem com que Olive partilha um nome de arvore, é a Hazel, e Hazel, acaba por ser, como percebemos ao longo do filme, a melhor escolha de companhia para Caden. A conexão com Hazel era provável, mas com Olive é inegável. Olive é a pessoa que figurativamente, dá vida a Caden.
A associação de Olive com a vida vegetal é dificilmente acidental, no entanto é importante mencionar que outros personagens também estão associados a flores de alguma maneira, mulheres em particular. Charlie Kaufman brinca com a ideia da mulher ser a criadora da vida, ou que para Caden, são as mulheres que lhe dão vida.
Independente de ser encontrar a sua filha, encontra o amor da sua vida, ou de encontrar a mulher em si, Caden, passa a integridade do filme em busca de mulher de uma forma ou de outra.
Tanto a Adele como a Maria, amante da Adele, nunca vestem padrões florais, em vez disso, usam cores carregadas e lamacentas associadas com a morte. Elas são as únicas personagens do sexo feminino que são vistas a usar cinzento. A roupa que Caden veste na cena final do filme é também ela cinzenta. Há uma exceção, no entanto, em que Milicent Weems é vista a usar uma espécie de avental cinzento, que estava, no entanto, cheio de múltiplas flores coloridas. Durante esta cena ela diz a Caden que ele está vivo e morto ao mesmo tempo. As suas palavras estão perfeitamente refletidas naquilo que ela veste. Especulação ou não penso que haja algum tipo de relação entre a figura feminina e a vida vegetal durante o filme, especialmente no caso da Olive.

(Milicent Weems, com um avental cinzento de padrão floral)

Mais tarde Caden fala sobre as ambições que tem, para o seu projeto, com a respetiva equipa, e a peça transforma-se em algo maior do que se espera à partida. A sua obsessão com a morte vai ser agora transportada para a sua arte, na qual se torna também obcecado. Este filme é arte que imita vida que imita arte que imita a vida e assim por diante, tornando-se cada vez mais complexo à medida que o tempo passa. Nos ensaios para a peça, os personagens acabam a representar versões de eles próprios, e isto não só torna difícil de distinguir as falas do filme com as falas da situação que representam, como se torna difícil de distinguir o filme da peça em si.
Aquilo que estamos a presenciar quanto à peça de Caden durante o curso do filme, é a transição desta para a vida real. Ele está tão fixado na ideia de criar algo tão honesto que qualquer alteração que faz à peça nesse sentido, faz com que ela se torne cada vez menos numa peça e mais na vida real. A pouco e pouco, Caden retira todo e qualquer tipo de ficção até ao ponto que, para o elenco, mais vale ser visto como a vida real propriamente dita.

Caden casa-se com Claire, com quem tem uma filha, apesar de não mostrar grande afeto pela nova familia. O nome Claire vem da origem latina que significa “transparente”, nome representativo da maneira como Caden a vê. Caden faz uso da transparência de Claire para substituir um lugar que foi desocupado por Adele, por aquilo que é essencialmente, uma “folha em branco”. Esta informação é apresentada à audiência de uma maneira que é forçosamente brusca e fria, simbólico da natureza desta relação. Caden não evita em pensar nestas personagens como sendo menos importantes para ele, e por isso faria sentido que a cena se apresentasse de uma forma tão gelada, atropelando vários anos da relação e deixando-os no vazio.
Caden usava Claire como atriz nas suas peças, para que esta se encaixa-se nos personagens que lhe correspondiam, e agora, faz uso dessas mesma qualidades para substituir um papel na sua própria vida. A arte imita a vida, mais uma vez. O dialogo da cena em que os dois se encontram torna-se agora mais importante:

“Claire: So, could you tell me maybe what it is that you want from me(my character)?
Caden: We’ll build it over time together, ‘kon, try to find a real person, maybe, to model it after?”

O casamento deles vem menos do amor que Caden sente por Claire e mais do desejo que tem de ser amado.



(Tatuagem de Olive à esquerda e tatuagem de Claire à direita, respetivamente)

Caden viaja até Berlim, de encontro à sua filha que tem agora dez anos e está tatuada da cabeça aos pés (como mencionado acima). Claire está visivelmente perturbada com esta viagem e diz-lhe que "toda a gente tem tatuagens", enquanto mostra uma tatuagem de uma espécie de demónio. O facto de Caden se mostrar surpreendido com este facto, como se nunca tivesse reparado, é mais um simbolo  da frieza da relação, e que Caden a vê quase, como um ser malvado, quando diz que não deve ir ver a filha a Berlim.



(livro de autoajuda, que Caden lê na viagem)

Caden, está agora no avião, enquanto lê um dos livro de autoajuda de Madeline, que descreve o que se está a passar no momento, na realidade do filme, enquanto Madeline aparece ao lado dele no avião. A ideia que o filme quer transmitir com isto é que cada decisão que tomamos na nossa vida, desencadeia por sua vez uma quantidade inimaginável de acontecimentos. Ela oferece-lhe uma chance de uma vida que inclui algum tipo de romance com ela, mas Caden recusa-a e por isso essa possibilidade deixa de existir. Cada escolha tomada abre novas possibilidades, mas também fecha outras.

Nessa viagem a Berlim Caden, reencontra Hazel e é claro que ele sempre sentiu algum tipo de proximidade com ela. Hazel tem agora uma família constituída com três filhos, o que acaba por magoar Caden, que tenta se suicidar depois de os ver juntos. Mais tarde vemos Caden à espera na porta da casa de Hazel, para lhe pedir algum tipo de conforto emocional. Ela aproxima-se do carro e diz-lhe, citando: “everyone has to figure out their own life”, ele quer que ela olhe para ele da mesma maneira, mas ela não se mostra disponível.
Esta cena simboliza a triste realidade, que se aplica a qualquer tipo de relações: a partir do momento em que alguém alivia a sua solidão, deixa de estar disponível para ajudar a aliviar a solidão de outrem. Enquanto o conforto do outro estiver assegurado, o que há a fazer é ficar a olhar, enquanto nós, nos encontramos, permanentemente, numa situação critica. Um lembrete de como não somos realmente importantes para ninguém, a não ser que sirvamos algum tipo de propósito para esse alguem.
Mais tarde, Hazel é despedida do trabalho e suplica a Caden que lhe arranje emprego na produção da peça. Esta cena serve de contraste à anterior. Agora que o seu conforto se encontra comprometido, vem à procura de conforto na pessoa a quem recusou conforto anteriormente.

(Sammy, o stalker, na sua primeira aparição, observa Caden subtilmente, durante a primeira cena de pequeno-almoço)

Sammy, o stalker de Caden, aparece numa audição para a personagem de Caden, e revela assim sem mais nem menos o que ele tem estado a fazer este tempo todo. Ele espia Caden já à 20 anos, e é perfeitamente natural que ele se tenha apercebido da sua obsessão com a autodescoberta, através da sua arte. Ele usa isto para aludir Caden a contratá-lo para o papel.
Quando Sammy aparece nas audições estamos em 2025; o filme começa em 2005. O momento em que Sammy começou a observar Caden como um voyeur, é também o momento em que a audiência começa a observar Caden como um voyeur. Sammy entra como uma representação direta da audiência.
Todas as informações que Sammy consegue, têm uma determinada ponta de omnisciência. Ele consegue de uma maneira ou de outra ler a mente de Caden, no entanto ele tem informações sobre outros personagens que ele não devia ter realisticamente.
Sinto que Sammy é tão representativo da audiência, como da imagem de deus. Não quero com isto dizer que ele é literalmente deus, mas Sammy quase que concede desejos ao longo do filme; desejos estes que são ultimamente a razão pela qual alguém ia acreditar em deus. Sammy persegue Caden de uma forma omniscente, ao mesmo tempo que nunca se deixa perceber como podemos ver em vários pontos do filme, e só se deixa perceber quando quer ser percebido. Ele percebe Caden e quer genuinamente saber dele.



(death in family - familia de Caden, God relieve our grief - Sammy, como aquele que alivia)

Ao longo da cena do apartamento alguma enfase é posta no seu nome completo Samuel, e a sua conotação bíblica. O nome tem origem no hebreu e traduz-se para “nome de deus”.
Sammy suicida-se mais tarde ao representar Caden na sua cena de suicidio, quando este recusa a Sammy o direito de se apaixonar por Hazel, e Caden reage friamente à sua morte. Enquanto todos os envolvidos na produção da peça se reúne em volta do corpo de Sammy, em compaixão, Caden grita com Sammy, agora morto, por tê-lo entendido mal. Afinal de contas Caden, não morreu. Ele nem sequer considera Sammy como um ser humano, neste momento, todos os personagens servem-lhe como ferramentas cruciais para alimentar a sua obsessão. O suicido de Sammy não conta como uma perda de vida, mas como um soluço, um entropeço para a produção do filme.

Como em muitos filmes de Charlie Kaufman, Caden é um personagem difícil de gostar.
Caden é um personagem por quem devemos sentir algum tipo de empatia, apesar de ele ser um grande egocentrista. Algo que reparei ao longo do filme foi que ele não parece fazer nada por ninguém no filme a não ser por ele próprio. Ele representa cada um dos audientes e é., no entanto, nada mais do que um narcisista. Cada relação em que se vê envolvido, é essencialmente para o seu próprio conforto, especialmente com Claire, que acaba por atingir os seus limites, a meio do filme. Caden sai de casa, e vai viver no apartamento ao lado, em grande parte para a continuar a inserir na peça de teatro como uma das personagens. Caden continua tão obsessivo como antes.

Caden está na causa de todas a destruição que viu na sua vida e no entanto, não consegue ver para lá de si próprio.

“You have struggled into existence, and are now slipping silently out of it. This is everyone’s experience. Every single one. The specifics hardly matter. Everyone’s everyone.”
-Millicent Weems, Synecdoche, New York


Aqui repousa a síntese do filme. Caden vem a descobrir que é Ellen. Tal como é Adele e Hazel e toda a população do planeta terra. Não quer dizer que ele seja fisicamente estas pessoas. Ele é o Caden, e elas são Adele, ou Hazel, ou Ellen. Eles são indivíduos, que considerados individualmente, representam o todo da humanidade. Kaufman conta-nos que indivíduos são sinedoques da humanidade. Espécimes do todo maior. Caden sofre porque sofrer é humano. A dor de Caden pertence-lhe, tal como pertence à humanidade em si.