terça-feira, 19 de junho de 2018

TOMBOY, género e bio poder







Tomboy (2011), Céline Sciamma
Cabelo curto, roupas largas, cidade diferente e uma possível identidade nova. Este é o enquadramento da  personagem principal, Laure/Michael (Zoé Héran), do filme Tomboy (2011), de Céline Sciamma. Retrata a identidade em transformação de uma criança recém chegada a uma cidade onde as amizades ainda estão por construir. É precisamente através do contacto com uma rapariga vizinha que a história se desenrola. Lisa (Jeanne Disson) assume que Laure é um rapaz e pergunta-lhe o nome recebendo como resposta: Michael.

No campo com as outras crianças, Laure é posta à prova. A competitividade e rapidez fazem parte das brincadeiras que muitas vezes são levadas ao extremo resultando em lutas e até mesmo exclusões do grupo. Lisa não queria que isso acontecesse ao novo amigo e por isso deixou-o ganhar para que fosse aceite. Quando se cresce tem-se a perceção do quão difícil pode ser a integração e aceitação em grupos durante a infância. É-se levado a agir de acordo com ações que não espelham os valores aprendidos em casa e na escola. Tudo em nome de não ficar só, ou pior que isso, de não ser perseguido e humilhado por outros. E isto acabou por acontecer no filme, obviamente. Já lá iremos.

A idade ainda lhe permite tirar a t-shirt e jogar à bola em tronco nu como os outros rapazes. O que a natureza do seu corpo não lhe permite é fazer as necessidade fisiológicas tal como eles, de pé. Isto leva-nos para a cena seguinte onde um dos rapazes a vê e acusa “ele fez xixi nas calças!” Claro está que Laure sentiu imensa vergonha e fugiu. Depois disso voltou a reunir-se com o grupo num lago. O facto de ter de usar roupa de banho tornava tudo mais difícil. Ainda assim, não lhe faltou criatividade e a plasticina foi a solução para colocar dentro das cuecas recortadas do seu fato de banho. Com algumas manobras conseguiu passar o dia sem que se percebe-se, mas via-se o medo e desconforto de Laure. 

Em casa, é perceptível a aceitação da família perante a sua forma de ser e demonstram ter uma relação próxima através de gestos de carinho quando ela se sente frágil. A irmã mais nova ajuda-a manter a mentira e também a apoia quando está em baixo. Quem não a viu com bons olhos foi a mãe quando soube que ela tinha batido num colega enquanto se fazia passar por rapaz. Deu-lhe o duro castigo de usar um vestido e ir pedir desculpas e a seguir ir contar a verdade a Lisa — esta última foi bem mais difícil. Já se tinham beijado, eram próximas.

Já todos sabiam. Laure correu o mais que conseguia, porém foi impossível evitar que a apanhassem depois de ser vista atrás das árvores a escutar a conversa que o grupo tinha sobre ela. A cena que se segue demonstra o bio poder em ação. É obrigada a expor-se perante os olhares inquisidores do grupo de maneira a provar que afinal não era um rapaz. Lisa defende-a, porém também não escapa à humilhação uma vez que todos sabiam que se tinham beijado — e sendo ambas raparigas, era “nojento”.

Assim se passaram as férias do Verão. A escola estava prestes a começar e a exposição iria ser inevitável. O filme termina com um recomeço. Lisa volta a perguntar-lhe o nome, ao que ela responde com algum receio: “Laure”, seguido de um leve sorriso de alívio.

Tomboy aborda temas como a identidade de género e o bio poder. É inevitável falar de género sem que o nome de Judith Butler não venha a seguir. A normatividade do género e da sexualidade obriga Laure a enfrentar desafios relacionados com a sua própria identidade desde cedo. Butler refere o seguinte na conhecida obra Gender Trouble: “Originally intended to dispute the biology-is-destiny formulation, the distinction between sex and gender serves the argument that whatever biological intractability sex appears to have, gender is culturally constructed: hence, gender is neither the causal result of sex nor as seemingly fixed as sex.” Tendo em conta este pensamento, Laure estava apenas a seguir a sua natureza desligada concessões sociais do que é ser “menina”. O sexo com que se nasce não define o género da pessoa. Em oposição, está o bio poder que Foucault trabalha na sua obra A História da Sexualidade. O “poder pequenino” que é capaz de fazer com que crianças de dez anos se humilhem e julguem devido às ideias já implícitas sobre a sexualidade — como deve ser um “menino” e uma “menina.” O poder está sempre presente, a retórica é que muda e com ela surgem diferentes manifestações.

Sciamma capta essas manifestações de uma forma bastante perspicaz. Aproveita as idiossincrasias dos pequenos atores e capta as micro expressões, os olhares e os suspiros que não precisam de ser acompanhados por palavras para transmitir emoções. Isto torna o filme muito próximo da realidade espelhando mesmo a essência da infância.

Termino com a seguinte pergunta: é realmente possível ‘dessexualizar’ a aparência?
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Anabela Ferreira